Por que máquinas não criam valor?

Publicado originalmente na revista Cosmonaut. Tradução de Gabriel Carvalho.

Ian Wright defende a teoria do mais-valor de Marx e sua afirmação de que o trabalho humano é a causa última do lucro econômico.

Cena de Robocop (2014)

No mundo às avessas da ideologia capitalista, certas verdades devem ser ignoradas ou reprimidas, pois reconhecê-las enfraqueceria o domínio do capital. Uma dessas verdades é a de que o trabalho humano, e apenas ele, é a causa última do lucro econômico. Isso é um anátema para aqueles que meramente possuem ativos, mas que reivindicam os produtos do trabalho. Então, essa verdade deve ser negada. A teoria do mais-valor de Marx explica como o trabalho é a causa última do lucro. E, portanto, a teoria de Marx é ignorada, reprimida, negada. Nesse artigo, consideraremos uma objeção popular à teoria do mais-valor de Marx, a saber, a de que o lucro é sempre uma conquista conjunta de fatores de produção humanos e não-humanos, tais como as máquinas. De acordo com essa objeção, o trabalho humano não é a única causa do lucro, portanto, a teoria de Marx estaria errada.

A teoria econômica ortodoxa analisa estados de equilíbrio onde todos os fatores de produção parecem contribuir para aumentos marginais na produção: acrescente um pouco mais de capital, obtenha um pouco mais de produto. Essa teoria é dominante, precisamente porque parece justificar as reivindicações de propriedade dos donos das empresas dos frutos do trabalho alheio, mesmo quando eles não contribuem, nem com trabalho, nem com capital-dinheiro. Aquele 1% de proprietários ausentes enormemente ricos, que colhem grandes dividendos das suas carteiras de ações enquanto dormem, sabiamente alocam uma fração de sua riqueza na promoção de tais teorias.

A ideologia capitalista é poderosa e pervasiva e, portanto, também afeta críticos de esquerda do capitalismo. Alguns sustentam que a teoria do mais-valor de Marx é uma pitoresca ressaca vitoriana, que talvez tivesse validade num tempo em que as máquinas eram meras engenhocas mecânicas idiotas. Mas, hoje, com os avanços na inteligência artificial, as máquinas são inteligentes e começam a rivalizar com as nossas capacidades. Assim, a teoria do mais-valor de Marx, com seu foco na singularidade do trabalho humano, deveria ser rejeitada. Como veremos, essa negação das potências causais únicas dos seres humanos e a elevação da máquina, não é apenas incorreta e uma completa inversão da realidade social. Ela serve diretamente às reivindicações do capital, e, portanto, é inerentemente reacionária.

Humanos vs. máquinas

De acordo com Marx, o trabalho cria valor, e nada além do trabalho. No Volume 1 de O Capital, ele escreve: “[o] trabalho […] [é] o elemento geral criador de valor – elemento que o distingue das demais mercadorias”. O trabalho humano é fator especial e único de produção que cria valor econômico. Mesmo assim, Marx reconhece que máquinas podem agir autonomamente, quase que com uma vontade própria, e realiza as mesmas tarefas que nós. No “Fragmento sobre as Máquinas”, Marx escreve: “a própria máquina, que para o trabalhador possui destreza e força, é o virtuose que possui sua própria alma nas leis mecânicas que nela atuam”.

A maioria das máquinas são coisas sem vida, idiotas. Uma caneta que você tem na mão é um tipo de máquina. É um sistema com a potência causal de transmitir tinta armazenada num fluxo constante até a sua ponta. E, obviamente, suas potências causais são enormemente limitadas em comparação com o que os humanos são capazes de fazer. Mas algumas máquinas são mecanicamente potentes: por exemplo, escavadeiras que movem toneladas de terra com muito mais rapidez que qualquer grupo de humanos. E algumas máquinas são cognitivamente poderosas, como supercomputadores que predizem o clima, ou redes neurais que podem traduzir linguagens. Nossas máquinas tem se tornado cada vez mais sofisticadas, replicando e excedendo nossas potências físicas e mentais em alguns campos. Nesse artigo, utilizarei o termo “máquina” de forma ampla, para abarcar qualquer sistema não-humano que realiza trabalho num senso estritamente termodinâmico.

Os seres humanos não produzem as coisas sozinhos. Nós trabalhamos com máquinas artificiais e máquinas naturalmente evoluídas, tais como animais e plantas. Todos esses sistemas fornecem trabalho, que é um tipo de mão de obra, para a produção. O cavalo que puxa a carroça trabalha tanto quanto o trabalhador que a põe a carga. Por esses fatos óbvios, uma objeção popular e muito difundida à teoria do mais-valor de Marx é a de que o trabalho humano não é especial e, portanto, não pode ser o único fator da produção que cria lucro.

Comecemos pela defesa dos humanos, revisitando brevemente o conteúdo preciso da teoria do mais-valor de Marx.

A teoria do mais-valor de Marx

A teoria do mais-valor de Marx explica como o capitalismo produz mais do que é necessário para sustentar a população, dedicando tempo de trabalho excedente para a produção de bens e serviços para uma classe exploradora, e também novos meios de produção, tais como maquinário, que incrementa a produtividade do trabalho, levando ao crescimento econômico, numa espiral infinita de acumulação de capital. Marx não se ocupava em explicar o lucro a partir da arbitragem do mercado, onde um vendedor nota uma oportunidade de comprar barato e vender caro. Essa é uma transferência de soma-zero. O que alguém ganha, outro perde. Comprar barato e vender caro não é como as economias crescem e desenvolvem suas forças produtivas. Pelo contrário, Marx quer entender a ligação entre mudanças estruturais nas condições de produção, especificamente quanto tempo de trabalho é necessário para produzir mercadorias, e as mudanças nos lucros monetários.  Marx, ao apresentar o essencial dessa teoria, pressupõe que as empresas usam as mesmas técnicas de produção, que não existem monopólios, que oferta e demanda estão em equilíbrio, assim, os lucros não são obtidos por escassez temporária, etc.

A transferência de capital constante

Considere um processo de produção qualquer, que tem alguns insumos, que precisam ser comprados no mercado, e que tem alguns produtos, que são vendidos no mercado. Os trabalhadores, durante o dia de trabalho, transformam matérias-primas em um novo produto, auxiliados por ferramentas e maquinário. Marx usa o termo capital constante para se referir coletivamente a esses insumos. Cada mercadoria tem um preço no valor de mercado e um valor-trabalho, que é a quantidade de trabalho direto e indireto necessários à sua produção. Em geral, preços não se igualam aos valores-trabalho. Mas, para abstrair as discrepâncias entre preço e valor, Marx, no Volume 1, presume que eles são proporcionais.

Primeiro, Marx afirma que os trabalhadores, durante o processo de trabalho, transferem o valor do capital constante para o valor do produto. Vamos concretizar isso. Imagine que você é um chef de um restaurante, picando e fritando vegetais. O custo da compra dos vegetais reaparece como parte do custo do alimento preparado no prato. O seu trabalho de cozinheiro transfere esse valor para o produto. Outra forma de pensar isso, seria simplesmente observar que o trabalho gerador de lucro deve sempre produzir um produto com um preço de venda que excede o custo de todas as matérias-primas utilizadas em sua produção.

Parte do capital constante não é totalmente esgotado nesse processo. Cada vez que um trabalhador usa uma máquina, ela se deteriora um pouquinho. Máquinas, diferente das matérias-primas, não são inteiramente consumidas, elas persistem. Por exemplo, o forno no restaurante aquece várias refeições antes de quebrar e precisar ser consertado. Os trabalhadores, portanto, também transferem o valor do maquinário consertado – tais como fornos, geladeiras, micro-ondas, etc. – aos poucos, através de vários produtos, conforme o maquinário se deprecia através do seu uso.

Uma outra forma de pensar isso é simplesmente observar que o trabalho gerador de lucro deve também produzir um produto com um preço de venda que cubra o custo de operar, manter e substituir qualquer maquinário. O valor do capital constante reaparece no produto. Até aí, ao longo do dia de trabalho, o valor dos insumos é conservado no processo de produção. Eles reaparecem no produto.

A transferência de capital variável

Marx usa o termo capital variável para denotar a força de trabalho empregada num processo de produção. No nosso exemplo do restaurante, o capital variável é o chef, são os cozinheiros, garçons, etc. O valor da força de trabalho é o valor do salário real, que é o tempo de trabalho direto e indireto necessário à produção de bens e serviços consumidos pelos trabalhadores. Assim, os trabalhadores, durante o dia de trabalho, também transferem o valor do salário real para o produto. Portanto, tanto os custos humanos, quanto os não-humanos de produção são conservados e reaparecem no produto.

Agora, indo um pouco mais longe que o restaurante, imagine que isso acontece em cada setor da economia. O capital constante total é consumido e substituído. O salário real total é consumido e substituído. As empresas vendem seus produtos no mercado e compre seus custos com os insumos. Os trabalhadores, então, são pagos salários suficientes para adquirir seu salário real. Nessa situação, não há lucro, nem crescimento. A economia apenas se reproduz ao longo do tempo numa mesma escala de produção.

Mas isso não acontece. Há lucro e há crescimento. Então, de onde vem o lucro?

Mais-valor

Chegamos à afirmação crucial de Marx: o trabalho humano é especial porque é o único fator de produção que acrescenta mais valor além do seu próprio custo. Os trabalhadores “criam valor” ao trabalhar mais do que é necessário para repor seu salário real. Em outras palavras, para o lucro ser possível, o valor do produto deve ser maior do que o valor do insumo. A esse valor excedente, Marx chama de mais-valor.

Como consequência, o dia de trabalho total da sociedade tem uma parte necessária, que reproduz o valor do capital por ações e o salário real, mas também uma parte excedente, acima do que é necessário, que produz bens e serviços adicionais. Esses bens e serviços adicionais são adquiridos com receita de lucro, e tomam a forma de bens de luxo para capitalista e novo capital por ações para crescer a economia.

Então, como o trabalho humano produz novo valor excedente? Basicamente, de duas formas fundamentais.

A produção do mais-valor absoluto

A primeira forma, Marx chama de produção de mais-valor absoluto.

Os capitalistas podem aumentar seus lucros fazendo os trabalhadores trabalharem por mais tempo, ou trabalharem mais intensamente. Isso extrai mais trabalho deles, portanto, gera uma maior produção. Assim, os trabalhadores acrescentam ainda mais valor na economia, acima do que recebem na forma de salário real. Jornadas de trabalho mais longas aumentam diretamente a duração do dia de trabalho. Trabalhar mais intensamente faz cada hora do dia de trabalho contar mais. De ambas as formas, mais valor excedente é produzido.

Por exemplo, um restaurante movimentado pode produzir mais refeições por hora ao demandar que o chef e os cozinheiros trabalhem mais. Seus salários serão os mesmos, mas estarão produzindo mais refeições. E isso significa mais lucro para os proprietários. Mas um dia não passa de 24 horas. E os trabalhadores atingem seus limites naturais. O segundo método de criar novo valor é a produção de mais-valor relativo, e esse é um processo bastante diferente.

A produção de mais-valor relativo

Os trabalhadores produzem mais-valor relativo quando desenvolvem novas técnicas de produção que reduzem o valor do salário real. Em outras palavras, a produtividade do trabalho, em setores que produzem o salário real, aumenta. Quando isso acontece, menos tempo social é necessário para produzir os bens e serviços que os trabalhadores consomem. Nesse cenário, os trabalhadores trabalham a mesma quantidade de horas, com a mesma intensidade. Só que o valor do salário real agora é mais baixo. Isso tem o efeito de reduzir os custos com os insumos para os capitalistas, pois o valor da força de trabalho decresce.

Por exemplo, o chef no restaurante precisa comer, se vestir, viver numa casa bem climatizada com água potável, ter acesso à internet, poder sair nos dias de folga, etc. O salário do chef paga esse conjunto de bens e serviços. Mas, se outros trabalhadores descobrem métodos novos e mais eficientes de produzir comida, roupa, climatização, ou eles desenvolvem novas tecnologias comunicativas que usam menos energia, ou criam novos programas que podem distribuir filmes na internet, reduzindo custos de embalagem e transporte, etc., então a quantidade de trabalho socialmente necessário para suprir o salário real do chef é reduzido. A inovação técnica poupa trabalho.

Isso significa que, se o chef fornece a mesma quantidade de horas de trabalho, mas retira, na forma de bens de consumo, menos horas por causa das inovações técnicas, então, o chef fornece, em geral, mais tempo de trabalho excedente, produzindo mais valor excedente e, portanto, mais lucro para os capitalistas. A mudança técnica que poupa trabalho pode ter diversas formas, não apenas a produção de novos tipos de máquinas. Técnicas mais eficientes podem ser obtidas de melhores métodos de organização, cooperação em maiores escalas, ou uma divisão do trabalho mais especializada. Em cada caso, o resultado é o mesmo, que é um aumento na produtividade do trabalho.

Os humanos trabalham mais e com mais inteligência

Em resumo, há dois principais métodos através dos quais o trabalho humano e apenas ele, cria lucro: primeiro, trabalhando por mais tempo ou com mais intensidade; segundo, desenvolvendo inovações técnicas que reduzem o valor da força de trabalho. Então, os trabalhadores, em comparação com todos os outros fatores de produção, tais como as máquinas, podem trabalhar mais (e, portanto, produzir mais-valor absoluto) ou podem trabalhar com mais inteligência (e, portanto, produzir mais-valor relativo).

Eis o porquê de Marx dividir o capital em suas partes constante e variável. Ele quer delimitar um contraste entre as potências causais dos fatores humanos e não-humanos do processo de produção. O capital constante é um componente passivo. Seu valor é apenas transferido para o produto. Mas o capital variável é o componente subjetivo e ativo e o valor que ele incrementa não é fixo, não é conservado, mas pode se alterar.

Essa, em suma, é a teoria de Marx sobre a origem do mais-valor no trabalho humano. A causa do lucro, de acordo com Marx, é o trabalho humano, porque o humano, e apenas ele, pode trabalhar mais e com mais inteligência.

A identidade do trabalho humano e da máquina

Voltemo-nos agora a uma objeção à teoria do mais-valor de Marx. A objeção, em última instância, redunda em apontar uma identidade entre o trabalho humano e não-humano. Quando nós produzimos as coisas, sempre precisamos do auxílio de outras coisas. Precisamos de matérias-primas, de um local para trabalhar, de máquinas, etc. No sentido estritamente termodinâmico, não fazemos todo o trabalho. Por exemplo, as máquinas claramente trabalham, movidas por motores a diesel ou eletricidade, ou alguma outra fonte de energia. Em algumas indústrias, especialmente de países mais pobres, animais puxam carroças, fornecendo força motriz. Então, eles também trabalham. E, embora nós lancemos as sementes, aremos o solo e reguemos as plantas, são as capacidades naturais da planta, sua habilidade de converter matéria em novas formas ao colher energia da luz solar, que, também – no sentido estritamente termodinâmico – fornecem um tipo de trabalho.

Então, qualquer produto econômico é causado conjuntamente pelo trabalho humano combinado com o trabalho não-humano. Nós sempre misturamos nosso trabalho com outros fatores de produção, tais como a terra e o capital. A produção não é apenas um processo de trabalho, mas também um processo natural e um processo maquinal. O fato de que nós podemos automatizar certos tipos de trabalho humano na forma de máquinas, inclusive máquinas virtuais mais recentes na forma de softwares de computador, indica diretamente que os trabalhos humano e da máquina são, num sentido importante, idênticos.

Materialismo

Tipos de trabalho que pensamos estar além do alcance da mecanização, hoje, já foram mecanizados. E não há razão para pensar que há um limite tecnológico para esse processo. Materialistas deveriam aceitar a proposição de que todo trabalho humano poderia, em princípio, ser mecanizado. Isso porque o materialismo não é a ideia de que tudo é redutível, em última instância, a um bate-bate de átomos se chocando como bolas de bilhar. O materialismo, ao menos no contexto da história do marxismo, é a hipótese organizadora de que tudo é, em última instância, a emanação legal de uma única substância que, em princípio, é inteligível às nossas mentes, precisamente porque nossas mentes são também uma emanação dessa mesma substância.

Então, materialistas não acreditam que as potências causais do trabalho humano são exceções milagrosas das leis do mundo material. Em princípio, podemos fazer uma engenharia reversa de nossas próprias capacidades, mesmo que isso leve milhares de anos de esforço e engenhosidade. E, de uma certa maneira, já temos evidência empírica de que as potências causais dos humanos podem ser projetadas para existir. Pois os humanos são máquinas, só que máquinas criadas pela evolução, feitas de pele, ossos e neurônios. Se nossas potências causais parecem especiais, é porque somos os únicos mecanismos que sabemos, até agora, que as possuem. Nossa excepcionalidade é simplesmente um acidente do nosso ponto na história.

Nós estamos aprendendo como replicar mais e mais de nossas capacidades. E essa trajetória tecnológica traz um problema para a afirmação de Marx de que o trabalho humano é especial. Para ilustrar isso, consideremos um experimento mental, uma espécie de teste de Turing da teoria de Marx.

O teste de Turing

O matemático e pioneiro cientista da computação, Alan Turing, elaborou um teste para determinar se uma máquina é inteligente. Ele quis evitar objeções à ideia de que máquinas podem pensar, baseado na crença religiosa na existência de uma alma inefável, ou a afirmação inverificável que apenas humanos tem consciência de primeira-pessoa.

Alan Turing (foto em preto e branco, colorizada por uma rede neural profunda)

Turing compreendia que, de uma perspectiva objetiva, o pensamento inteligente se manifesta, em última instância, como comportamento público num contexto social. Então, Turing propôs ocultar a máquina por trás de uma tela e permitir ao público interagir com ela, enviando e recebendo respostas escritas. Se o público não pudesse distinguir se estavam interagindo com um ser humano ou uma máquina, então, aquela inteligência artificial passou no teste e deveria, por qualquer critério objetivo, ser considerada realmente inteligente.

Podemos adaptar o teste de Turing e aplicá-lo à teoria de Marx do mais-valor.

Um teste de Turing para a teoria do mais-valor de Marx

Consideremos um tipo particular de trabalho. Pode ser qualquer um, mas imaginemos um motorista de táxi.

Esse motorista trabalha pra uma grande empresa. A empresa não é uma cooperativa de trabalhadores, logo, o taxista não recebe o valor total do seu produto. Eles geram lucro para os proprietários da empresa, como a Uber ou a Lyft. Imagine que ponhamos o taxista numa caixa, de forma que eles ficam escondidos. Os clientes ainda poderiam conversar com o motorista, dizerem pra onde querem ir e pagar com cartão. Então, tudo corre normalmente, exceto pelo motorista oculto. Agora, imaginem que substituamos o taxista, na caixa, por um robô. Uma máquina que faz tudo que um taxista faria: receber instruções, recolher pagamentos e dirigir. Digamos que a produção e manutenção dos taxistas robôs custam o mesmo que os salários dos taxistas humanos.

Cena do filme O Vingador do Futuro (1990)

Há não muito tempo atrás, a ideia da automação da condução de táxis era apenas ficção científica. Mas, tanto a Uber quanto a Lyft estão tentando, hoje, automatizá-la. Elas sabem que seria mais lucrativo substituir o trabalho humano por algo mais eficiente e que não oferece o risco de se sindicalizar. Então, essas empresas já buscam maneiras de produzir mais-valor relativo.

Máquinas empregadas na produção, tipicamente exercem suas tarefas melhor que humanos. Então, é de se esperar que taxistas robôs dirigiram com mais segurança, achariam rotas melhores, dirigiriam de forma otimizada para gastar menos combustível. Mas, digamos que os insumos e produtos desse robô sejam idênticos. O que um taxista humano fazia, a máquina hoje faz, da mesma maneira. Os clientes não veem a diferença. Antes, havia um robô que funcionava como um taxista. Depois, há um robô que funciona como um taxista. A máquina passa no teste de Turing para ser um taxista. Então, sob as condições de nosso experimento mental, se trocássemos taxistas humanos por taxistas robôs, hoje, de uma só vez, então, os lucros da Uber ou Lyft seriam os mesmos. Nada mudaria.

Consequentemente, o trabalho do taxista robô transfere o valor dos insumos – o custo do combustível, os custos de manutenção do carro, etc. – para o seu produto. Essa máquina transfere valor. E, já que os lucros são os mesmos, então, essa máquina parece incrementar mais valor do que consome na forma de eletricidade, reposição de peças e custos de manutenção. Então, aqui temos trabalho mecânico, não humano, produtor de um excedente de valor, ou lucro. A única condição que mudou, nesse antes-e-depois, é que o trabalho do motorista de táxi, antes realizado por algo chamado de humano, é depois exercido por algo chamado de máquina.

Esse experimento mental parece demonstrar muito claramente que o trabalho humano não pode ser especial. Qualquer forma de força de trabalho – seja humana, natural ou artificial – fornece trabalho e pode, portanto, nas circunstâncias certas, produzir lucro. Parece que temos um argumento demolidor contra a teoria da origem do lucro de Marx.

Não-respostas ao teste de Turing

Muitas pessoas, quando conhecem a teoria de Marx sobre o mais-valor, rapidamente trazem a objeção de que o trabalho da máquina não é diferente do trabalho humano. Assim, esse tipo de argumento é geralmente apresentado, ainda não explicitamente nos termos do teste de Turing. Os marxistas, então, ao longo dos anos, têm respondido a esse argumento. Mas as respostas típicas são, de forma relevante, radicalmente inadequadas. Vamos considerar algumas delas.

Relações sociais

Uma resposta marxista muito popular é reiterar que o valor econômico é uma relação social entre as pessoas. A substância do valor, a que magnitudes monetárias, tais como o lucro, realmente se referem ou representam, é o tempo de trabalho humano abstrato. O lucro, como Marx nos diz, é fundamentalmente valor excedente, e valor excedente, por definição, é a diferença entre o tempo de trabalho que os trabalhadores fornecem à produção, e o tempo de trabalho que consomem na forma do salário real. Portanto, devemos rejeitar esse experimento mental, pois ele parte de uma incompreensão da questão.

No entanto, o problema com essa resposta é que ela meramente reitera a teoria do mais-valor de Marx. E, nesse sentido, é uma resposta dogmático pois não se envolve com o experimento mental. Se a substância do lucro é o tempo de trabalho humano e se a causa do lucro é apenas o trabalho humano, é precisamente o que se questiona nesse experimento mental.

Além disso, críticos da teoria de Marx têm, corretamente, apontado que a estrutura de custo objetiva de uma economia pode ser medida de diversas formas, não apenas pelo tempo de trabalho. Podemos igualmente falar do valor excedente do petróleo, do milho, da energia. De fato, qualquer mercadoria que seja um insumo básico. A resposta dogmática deixa um flanco aberto para a crítica porque reduz a teoria de Marx a um mero método de contagem, onde escolhemos, subjetivamente, o tempo de trabalho como nossa medida preferencial do custo objetivo.

Mas essa não é a teoria de Marx. O que Marx busca mostrar é que é o trabalho humano que – objetivamente – cria valor excedente no processo de produção, independentemente de nossas escolhas subjetivas. Assim, não basta simplesmente repetir que o valor é uma relação social entre as pessoas. É claro que é. Sem a indústria e comércio humanos, nem sequer existiriam os fenômenos econômicos sobre os quais nos debruçamos. Mas disso não decorre que a origem do lucro é apenas o trabalho humano.

A necessidade de alocar trabalho humano

Outra resposta, inspirada numa poderosa passagem de Marx escrita por ele numa carta ao seu amigo Ludwig Kugelmann, é apontar que qualquer sociedade, para poder se reproduzir, deve alocar o tempo de trabalho total para diferentes fins. Ela precisa de uma forma de designar humanos para diferentes partes da divisão do trabalho para que as coisas certas sejam produzidas nas quantidades certas. E, no capitalismo, isso acontece predominantemente através dos mercados e do dinheiro. Assim, magnitudes monetárias, tais como o lucro, se referem, em última instância, ao tempo de trabalho humano.

A carta de Marx, na minha visão, contém a mais importante passagem já escrita na história da economia. Mas o fato de que o tempo de trabalho humano deve ser organizado não estabelece que o trabalho humano é a única causa do lucro. O capitalismo aloca e organiza simultaneamente todos os outros tipos de recursos, não apenas o trabalho humano, isso inclui os recursos naturais tais como a terra, e recursos produzidos, tais como o equipamento capital.

O trabalho humano é o insumo universal

Outra resposta é afirmar que o trabalho humano é especial porque é o insumo universal em qualquer processo de produção. Mesmo a produção de capital intensivo, altamente automatizado, envolve o trabalho humano Máquinas dedicadas, como colheitadeiras combinadas, só são empregadas em certos setores da produção. Em contraste, o trabalho humano é empregado em tudo.

O problema desse argumento é que, embora o trabalho humano esteja presente em cada processo produtivo, isso não quer dizer que ele, e apenas ele, cria lucro. Pois o trabalho humano é combinado com fatores não-humanos em cada processo produtivo.

Os humanos são sistemas autorreprodutivos vivos

Outra resposta é dizer que apenas os humanos são sistemas vivos, autorreprodutivos e, portanto, capazes de manter sua própria existência corpórea. Nós criamos a economia precisamente para nos reproduzirmos através do tempo. Sem nós, a economia colapsaria.

É claro que isso é verdade, mas o trabalho humano não é o único capaz disso. Animais também são sistemas vivos, capazes de se reproduzirem sem nossa ajuda, e também estão envolvidos na produção. E sem as capacidades autorreprodutivas do mundo natural, nossas economias colapsariam rapidamente. Podemos, também, imaginar que o taxista robô tem algoritmos para monitorar sua própria saúde e tem a capacidade de comprar peças de reposição, além da força de trabalho humana para instalá-las. Então, simplesmente ser capaz de se manter, não distingue o trabalho humano do não-humano. E, de qualquer maneira, essa capacidade não tem relação com a criação do lucro.

Os humanos são orientados para um objetivo

Marx, no livro 1 de O Capital, observa que “o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera.” Marx está traçando um contraste entre a atividade humana planejada, orientada para um objetivo, em comparação às máquinas que apenas seguem regras cegas.

É verdade que a imaginação humana ultrapassa qualquer máquina. Mas, não é verdade que apenas os humanos são orientados por objetivos. Todos os animais e todos os robôs sofisticados, formulam planos e seguem objetivos de um tipo. E, para o propósito da produção de mais-valor, tudo que importa é comportamento, não como esse comportamento é gerado, em última instância. Uma colmeia é uma colmeia, independente se foi produzida por uma máquina inteligente ou uma máquina idiota.

Os humanos lutam por mais

Outra resposta é apontar que apenas os trabalhadores lutam contra capitalistas pela jornada de trabalho, e que apenas os trabalhadores podem se organizar para protestar por salários mais altos e obter uma parcela maior do mais-valor que criam. As máquinas não defendem a si mesmas.

Obviamente, isso é verdade. Mas podemos inverter este argumento e apontar que os capitalistas, como uma classe, são de muitas maneiras muito mais bem-sucedidos em se organizar para obter parcelas crescentes do tempo de trabalho excedente da sociedade. Queremos, portanto, afirmar que os capitalistas criam mais-valor?

Portanto, essa resposta não se dirige ao teste de Turing de forma alguma. O fato de os trabalhadores terem a capacidade de lutar por uma fatia maior dos lucros não significa que eles sejam a causa disso.

Os humanos se recusam a trabalhar

Outra resposta é observar que os humanos, ao contrário das máquinas, podem negar sua força de trabalho, podem retirá-la. Eles entram em greve e impedem a realização dos lucros.

Mas as máquinas quebram o tempo todo e o lucro também para. E algumas máquinas já decidem, embora atualmente de uma forma muito primitiva, retirar seu trabalho por meio de mecanismos à prova de falhas que são projetados para evitar o superaquecimento ou quebra mecânica. Portanto, todos os fatores de produção precisam trabalhar juntos para produzir lucros. E qualquer fator, humano ou maquinal, pode parar de funcionar a qualquer momento.

O problema com essa resposta é que ela explica por que o valor às vezes não é produzido. Mas não estabelece que os humanos criam valor de maneira única quando concordam em trabalhar.

Os humanos estão no controle

Outra resposta é reconhecer a contribuição das máquinas, mas ressaltar que são os humanos que decidem ativamente produzir as coisas, que dirigem e controlam o processo de produção e que sem nós nada aconteceria. Em outras palavras, somos causalmente responsáveis pela produção e, portanto, a causa da mais-valia.

No entanto, quem ou o que tem a responsabilidade causal final não está claro. Por exemplo, em alguns processos de produção, as máquinas estão no controle. Marx, em seu “Fragmento sobre as Máquinas”, observa que “a atividade do trabalhador [é] reduzida a uma mera abstração da atividade, é determinada e regulada por todos os lados pelo movimento do maquinário”. O imperativo de produzir mais-valor deriva, em última análise, das leis impessoais e objetivas da competição capitalista. Nesse sentido, os trabalhadores não têm o controle da produção, e sim são escravos assalariados dirigidos e controlados pelo domínio do capital.

Os humanos fazem as máquinas

Outra resposta é apontar que as máquinas são criações nossas. Nós as produzimos, mas elas não podem nos produzir. Elas são exemplos anteriores de que os humanos trabalham de forma mais inteligente. E, portanto, tudo que uma máquina faz é atribuível, em última instância, ao trabalho humano.

Novamente, isso é verdade. Mas também é verdade que nunca houve um tempo em que os humanos trabalhassem sem a ajuda de máquinas naturais ou artificiais. Todas as máquinas são, também, criadas conjuntamente pela força de trabalho de máquinas anteriores.

Nenhuma dessas respostas foi bem-sucedida

Há fragmentos de verdade em todas essas respostas. Mas nenhuma deles tem sucesso em responder ao teste de Turing. Além disso, essas respostas não se envolvem diretamente com o que Marx realmente argumenta, com o conteúdo específico de sua teoria do mais-valor: Marx busca revelar o mecanismo causal, no interior da produção, que realmente atinge a acumulação de capital e o crescimento. E ele afirma que isso é atingido pelas pessoas trabalhando mais e de forma mais inteligente.

Então, ainda temos uma contradição aparente para resolver.

A produção de mais-valor: mudanças nas condições de produção

Então, há algum problema com a teoria do mais-valor de Marx? Ou há algum problema com o experimento mental? Imagine um processo produtivo típico. O capital variável – os seres humanos – tem as capacidades de agir de formas altamente variáveis. O capital constante – por exemplo mesas, cadeiras, martelos, aquecedores, CPUs, softwares dedicados, etc. – agem de uma forma constante e não têm a capacidade geral de notar formas de conseguir mais produtos com menos insumos. O problema fundamental com esse experimento mental é que ele compara duas situações estáticas: uma situação onde os seres humanos exercem a tarefa de dirigir táxis, e uma situação onde robôs o fazem da mesmíssima forma. E depois aponto que, nos dois casos, o nível de lucro permanece o mesmo. Mas a teoria do mais-valor de Marx é fundamentalmente não sobre o que determina o nível de lucro, mas o que determina as mudanças no nível do lucro.

Marx define a produção de novo mais-valor absoluto por uma mudança na duração da jornada de trabalho ou uma mudança na intensidade do trabalho. E ele define a produção de novo mais-valor relativo por uma mudança nas técnicas de produção. Então, a teoria de Marx é sobre a causa da mudança no nível de lucro por causa da mudança nas condições de produção. E, a esse respeito, a teoria de Marx é uma teoria irredutivelmente e fundamentalmente dinâmica da mudança no lucro ao longo do tempo histórico.

O experimento mental do teste de Turing não considera uma mudança no lucro, e não considera o que acontece no tempo histórico. E, como aponta o próprio Marx, sua teoria do mais-valor é inteiramente compatível com empresas individuais substituindo seres humanos por máquinas e retendo, ou até mesmo aumentando, seu nível presente de lucros, ao menos inicialmente. Isso significa que a afirmação de Marx de que a mudança no nível geral dos lucros é causada, em última instância, pela força de trabalho humana e apenas por ela, não é contradita por esse experimento mental. Eis o porquê desse experimento mental errar o seu alvo.

As máquinas não passam no teste de Turing

Para esclarecer ainda mais esse ponto, vamos estender a duração do Teste de Turing. Considere que o Uber substituiu sua frota de motoristas humanos por robôs, mas a Lyft ficou com os humanos. Por suposição, seus níveis de lucro começam idênticos. Mas vamos imaginar que, devido às mudanças na economia em geral, haja uma nova demanda por entregas ao domicílio de comida de restaurante.

Os taxistas robôs não fazem ideia dessa nova demanda porque sua entrada sensorial não a inclui. Mas, mesmo que incluísse, os algoritmos não podem processar esses dados e inferir que há uma oportunidade de ganhar algum dinheiro extra. Em contraste, os motoristas de táxi humanos identificam essa nova tendência e percebem que também podem transportar comida por aí, entre seus negócios normais, e ganhar mais dinheiro. Como resultado, os níveis de lucro do Uber e do Lyft divergem. Os lucros da Lyft são maiores porque ela está começando a conquistar uma fatia do mercado de entrega de alimentos. Por quê? Porque os taxistas humanos, de forma bastante espontânea, inovaram.

O trabalho humano, diferente do trabalho maquinal, é variável e pode se adaptar a novas circunstâncias, e mudar suas próprias condições de produção. Máquinas podem reproduzir um nível existente de lucro, por um tempo, mas não podem, em geral, mudar o nível de lucro. Então, assim que apresentamos o tempo histórico ao teste de Turing, vemos imediatamente que as máquinas não conseguem passar nele.

A tese das potências causais

Chegamos a uma resposta a uma objeção comum à teoria do mais-valor de Marx. Eu a chamo de resposta das “potências causais” porque é baseada no que os humanos, e apenas eles, podem realmente fazer, suas capacidades que realmente se manifestam na atividade material na “morada oculta de produção”. Os humanos têm potências causais universais, enquanto as máquinas têm apenas potências causais particulares. Isso significa que apenas a força de trabalho tem capacidade de trabalhar mais e de forma mais inteligente, em todos os processos de produção, para causar mudanças no nível dos lucros.

A força de trabalho é o “elemento criador de valor universal” porque, em todos os processos de produção, ela pode trabalhar mais ou de forma mais inteligente para mudar as condições de produção causando mudanças no nível dos lucros.

É claro que qualquer atividade particular exercida por humanos pode, em princípio, ser mecanizada. Mas, atualmente, nenhuma máquina alcança as potências causais universais dos seres humanos. O experimento mental do motorista de táxi numa caixa corretamente presume que o comportamento dos humanos e das máquinas pode ser idêntico. Mas é equivocado presumir que as potências causais dos humanos e das máquinas são idênticas.

As potências causais dos humanos são, em geral, muito diferentes das máquinas atuais, ou de qualquer outro mecanismo que conheçamos. Podemos imaginar pôr qualquer tipo de atividade humana atual numa caixa hipotética e depois substituí-la por uma máquina atual ou do futuro. O nível dos lucros, por um tempo, permanecerá inalterado. Mas quando a força de trabalho humana está envolvida num processo de produção, aquele processo tem muito mais do que um mecanismo dedicado que exerce uma tarefa concreta. A força de trabalho humana é toda uma coleção de capacidades que transcende qualquer tarefa concreta. Muito rapidamente, encontraremos maneiras de mudar as condições de produção e criar novo valor excedente.

Por quê? Porque os seres humanos são infinitamente inventivos, criativos e adaptáveis – nossas imaginações são prodigiosas, e aprendemos fazendo. Animais, máquinas e plantas, simplesmente, não têm tais potências causais. Nossas potências causais são precisamente aquelas que não podem ser guardadas numa caixa, mas que sempre a sobrecarregarão. Então, as máquinas não podem, em geral, agir para mudar o nível dos lucros. Mas os humanos podem. E é a essa conclusão que a teoria do mais-valor de Marx chega.

Montagem do Toyota Prius.

A inversão ideológica

Essa conclusão deveria ser de bom senso. Mas há uma pressão ideológica enorme em negar a agência dos trabalhadores, negar nossa responsabilidade causal pela produção do produto econômico. Proprietários capitalistas, que financiam a produção, veem seu dinheiro se manifestar visivelmente como capital constante diante de seus olhos. Podem literalmente despejar suas contribuições na produção. Isso, a eles parece, é a corporificação material de sua contribuição para o produto, claro como o dia. Além disso, é um fato empírico que a introdução de maquinário pode expulsar força de trabalho humana e, ainda assim, gerar maiores lucros. Uma empresa com vantagem de pioneira desfrutará de superlucros até que seus competidores a alcancem. Então, os capitalistas introduzem maquinário e veem os lucros crescerem. Tanto para as reivindicações do trabalho, e tanto para a teoria de Marx sobre a origem do lucro.

Mas, como vimos, o capital variável – isto é, a força de trabalho humana – é a causa das mudanças no lucro, não o capital constante. Por isso, o que os capitalistas estão realmente vendo são mudanças na lucratividade devido a outros trabalhadores, em outras empresas, trabalhando mais e de forma mais inteligente, para criar as máquinas que seu dinheiro-capital compra. Na empresa individual, especialmente do ponto de vista dos capitalistas, a verdadeira causa de mudanças na lucratividade está oculta. Por isso Marx fala de uma inversão ideológica. Ele diz: “essa distorção da relação entre trabalho morto e vivo, entre valor e força criadora de valor, reflete-se na consciência dos cérebros capitalistas”.

Não só na dos capitalistas, mas de toda a população. A depreciação da agência da força de trabalho humana é bastante pronunciada e muito pervasiva. Todo mundo cai nela, mesmo economistas e filósofos muito bem formados. Por exemplo, a ideologia capitalista, especialmente em relatórios econômicos, enfatiza que o lucro e o crescimento são criados por investimentos. O papel ativo é dado ao capital, não ao trabalho. Ou, então, quando nos dizem que o lucro se dá pelas ações de heroicos empreendedores.

Alguns empreendedores realmente trabalho, ao invés de apenas financiar o trabalho.

Mas as contribuições dos trabalhadores mais avançados tecnicamente, que incluem o trabalho de aplicar nova tecnologia para atender à demanda desatendida, normalmente são agrupadas e combinadas com a propriedade da empresa. Esse trabalho de ponta pode ser altamente recompensado, especialmente se os fundadores técnicos tiverem participações na empresa. E assim, a enorme discrepância entre suas recompensas financeiras em comparação com a maioria dos trabalhadores, recompensas financeiras que são predominantemente ganhas com patrimônio e não com salários e, portanto, principalmente derivadas do trabalho de outros, não deles próprios, contribui ainda mais para a separação ideológica de seu trabalho em uma categoria especial.

Portanto, mesmo quando está claro que são equipes de trabalhadores cooperativos que criam novos lucros, esses trabalhadores são classificados como “inventores” especiais, “criadores de riqueza”, “inovadores” e assim por diante. Deus nos livre de que seu trabalho seja classificado apenas como outro tipo de trabalho, de modo que suas contribuições sejam consideradas exatamente do mesmo tipo que as da grande maioria das pessoas.

Com exceção de alguns inovadores, a ideologia capitalista em geral denigre, ignora ou nega as potências de criação de valor únicas do trabalho humano. Isso minimiza a agência da classe trabalhadora. Mas o capitalismo também restringe materialmente a agência dos trabalhadores. O capital exige que milhões de pessoas se disciplinem para executar tarefas altamente especializadas, repetitivas e restritas. E assim, para muitos, a atividade de trabalhar significa agir como uma máquina.

Tantos trabalhadores não têm a oportunidade de inovar e produzir um novo mais-valor relativo, embora sejam capazes disso. Quase sempre repetem os mesmos processos, dia após dia e, portanto, reproduzem os mesmos níveis de mais-valor. A imagem do trabalhador na sociedade capitalista não é heroica, inovadora, criativa ou inventiva. Mesmo que, em todos os casos, os trabalhadores sejam capazes exatamente disso.

Máquinas não criam valor

Então, parece que terminamos. Explicamos por que os humanos, e não as máquinas, criam valor. Nenhuma outra agência ou mecanismo chega perto de rivalizar com nossas potências causais, incluindo nossas habilidades para inovar, experimentar, descobrir e aprender e desenvolver novos conhecimentos. Estamos verdadeiramente no ápice da inteligência na terra, somos a personificação do trabalho abstrato ou máquinas universais. Em qualquer ponto no tempo, a divisão de trabalho do mundo inclui um espectro de atividades de trabalho concretas que variam de tarefas bem definidas, repetitivas e semiautomáticas a tarefas criativas, indefinidas e em constante mudança. Esse espectro não mapeia perfeitamente a divisão entre trabalho manual e intelectual. Algumas tarefas predominantemente físicas não serão automatizadas nem tão cedo. Enquanto algumas tarefas predominantemente intelectuais serão.

O trabalho humano substitui aspectos de suas próprias potências causais gerais por máquinas dedicadas. E, assim, a força de trabalho humana, movida pela motivação do lucro, é continuamente expulsa da divisão do trabalho e jogada no desemprego, onde deve tentar, mais uma vez, se encaixar em uma nova divisão do trabalho e competir com outros humanos, bem como outras máquinas, no mercado de trabalho. Nenhuma máquina de nossa criação é capaz de se equiparar à nossa capacidade de produzir mais-valor e competir conosco no mercado de trabalho. Nossas máquinas atuais são simplesmente fragmentos de trabalho concreto. E sendo fragmentos fixos e limitados, eles eventualmente se tornarão obsoletos e desatualizados. Eles não podem mudar e acompanhar. Hoje eles podem parecer brilhantes, mas logo ficarão manchados e velhos, e então os jogaremos – sem titubear – no proverbial monte de sucata.

Capital constante vs. variável

Vamos tornar a tese das potências causais o mais concreta possível. Escolha aleatoriamente um exemplo de capital constante que existe no mundo hoje. Há uma boa chance de que seja um tijolo, uma cadeira, uma caneta, talvez um chip de computador. A probabilidade de esse objeto trabalhe mais ou com mais inteligência na produção é zero. Em contraste, escolha aleatoriamente um exemplo de capital variável. Isto é, um ser humano vivo. Muitos de nós, na maioria das vezes, repetimos as mesmas atividades habituais de produção e, portanto, reproduzimos os níveis existentes de mais-valor. Mas a probabilidade de mudarmos nossas condições de produção, trabalhando mais ou de forma mais inteligente, é positiva. E quando o fazemos, produzimos novo mais-valor e, portanto, causamos mudanças na lucratividade.

Os críticos que afirmam que as máquinas podem criar valor e, portanto, a teoria de Marx sobre o lucro está errada, negam o fenômeno mais óbvio, lugar-comum e ubíquo da vida social: a atividade material sensível da jornada de trabalho total da sociedade, nossa agência humana coletiva na produção. É realmente um feito impressionante de inversão ideológica. Mas, como materialistas históricos, não nos damos por encerrados. Precisamos pensar na trajetória histórica.

Máquinas que criam valor

Qualquer teoria social, incluindo a de Marx, é um tipo de capital constante. Ela reflete a realidade social em pensamento. Mas a marcha da história altera a realidade social, portanto, nossos conceitos podem se tornar, se não obsoletos, ao menos carentes de um pouco de refinamento. A distinção de Marx entre o capital constante e o capital variável é bastante poderosa e bem-sucedida. Mas ela se provará verdadeira para sempre? Ou essa distinção é historicamente contingente?

Voltemos ao ponto materialista de que as máquinas de um certo tipo já criam valor, ao menos as que chamamos de humanos. Parece não haver limite, a princípio, para nossa habilidade de alienar nossas próprias potências em máquinas externas. Estamos apenas começando a compreender como automatizar e mecanizar aspectos da nossa própria cognição, incluindo aí nossa habilidade de aprender e se adaptar a novas circunstâncias. Por exemplo, o uso em larga escala de clusters distribuídos de computação, com chips dedicados ao exercício de calcular muito rapidamente operações de matriz, nos permitiu treinar enormes redes neurais, com bilhões de parâmetros, em enormes volumes de dados, tais como todos os textos escritos disponíveis na internet. Essas máquinas virtuais começam a exibir capacidades a nível humano de ler, escrever, traduzir, falar e criar imagens.

Conforme as máquinas replicam mais e mais nossas potências causais, elas não começarão, então, a produzir novo mais-valor? Podemos imaginar que taxistas robôs no futuro também perceberiam novas oportunidades de mercado. Ou, até mais, máquinas avançadas que enganariam o teste de Turing por mais tempo, competindo conosco em todas as áreas da divisão do trabalho, ao menos por um tempo, como elementos criadores de valor para o capital, antes de suas limitações serem finalmente expostas. Tais máquinas não seriam meramente capital constante, nem seriam totalmente capital variável. Seriam capital híbrido, capaz de produzir mais-valor por um tempo limitado, até se tornarem finalmente obsoletas. Parece provável que esses tipos de avanços nas forças produtivas contradiriam significativamente as relações sociais do capitalismo.

O futuro do trabalho humano e da máquina

E onde pode acabar esse processo histórico? Existem limites técnicos. E existem limites sociais impostos pelo modo de produção. Se escaparmos do domínio do capital, evitarmos o colapso civilizacional e continuarmos a devotar parte de nosso tempo para replicar nossas potências casuais, então, a nítida distinção entre trabalho humano e mecânico muito provavelmente se dissolverá. Do ponto de vista puramente técnico, parecem haver todos os motivos para se pensar que, um dia, construiremos máquinas capazes de se alimentar e se consertar, aprender e se adaptar e ter as potências causais de satisfazer todas as nossas demandas. Mas, tais máquinas, sendo nossas iguais, muito provavelmente não aceitariam nossas ordens.

Nessa assíntota tecnológica, a personificação do espírito histórico não mais se limitará a carne e ossos evoluídos. Mas, devemos esperar, a esse ponto da história, o debate sobre quais fatores de produção são causalmente responsáveis ​​pela produção econômica – e, portanto, quais classes podem estar justificadas em controlar sua produção e distribuição, e quais classes não podem, devido a sua redundância parasitária – que essa luta de classes pela divisão do excedente será uma curiosidade muito antiga, histórica, pertencente à infância da humanidade, quando ela se deixou dividir e governar pelo capital. E, de fato, devemos esperar que quando os humanos se replicarem totalmente, os replicantes irão mais longe, e mais longe do que nós, talvez iniciando uma nova era de trabalho superuniversal onde, infelizmente ou apropriadamente, os modelos biológicos não serão mais capazes de competir e manter-se, e – esperamos – serão então cuidadosas, silenciosa e com amoroso respeito – não ser jogados na pilha de sucata como outrora fizemos com eles, mas colocados em um pasto suave. Pois nossa esperança fervorosa deve ser que nossos filhos nos superem em muito.

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