Possibilidade Ontológica do Conhecimento1

Cristina Paniago2

Um elemento de fundamental importância e de distinção entre as diversas metodologias é a pressuposição, ou não, no momento de se conceber o como se conhece, da possibilidade do conhecimento do real efetivamente existente.

As principais propostas metodológicas contemporâneas permanecem ou no terreno do empirismo clássico (apenas o singular é considerado como objeto do conhecimento, pois o único capaz de ser comprovado pela experiência), ou sob influência de Kant (é impossível conhecer a coisa-em-si, mas apenas as sensações que o objeto proporciona ao sujeito) ou, ainda, do hegelianismo (o sujeito processa seu auto-conhecimento ao identificar-se com o objeto).

Em contraste com todas essas correntes – e suas inúmeras variações -, é possível conceber, com base em Marx, uma proposta metodológica onde o conhecimento do real efetivamente existente, em suas dimensões singulares e universais, torna-se imprescindível à transformação da natureza e das relações entre os homens.

Já em suas obras da juventude, em debate travado com seguidores de Hegel, Marx rechaça veementemente a identificação entre o sujeito e o objeto. Numa passagem de A Sagrada Família, afirma que os filósofos especulativos conseguem explicar a atividade de identificar as diferenças do objeto como a auto-atividade do sujeito absoluto, como mero resultado de seu “próprio intelecto abstrato”, o que, segundo ele, na “terminologia especulativa, [significa] conceber a substância como sujeito, como processo interior, como pessoa absoluta, concepção que forma o caráter essencial do método hegeliano”.3

Para os “especulativos”, o movimento do pensamento do abstrato ao concreto, ao invés de reconhecer o real autonomamente existente, antes o define como um “concreto espiritual”, ainda cativo de determinações etéreas, subjetivamente construídas. O movimento de conhecimento do real acaba por retornar ao plano da subjetividade, com o que está definitivamente perdido o acesso ao ser-precisamente-assim existente.

No mesmo texto, na exemplificação dada sobre a “encarnação da substância, da fruta absoluta” e suas “cristalizações plasmadas” (a pêra e a maçã), Marx faz uma bem humorada referência às afirmações dos filósofos especulativos:

O que, por conseguinte, nos alegra na especulação é voltar a encontrarmos com todas as frutas reais, porém como frutas dotadas de uma significação mística mais alta, que brotam do éter de nosso cérebro, e não do solo material, que são encarnações da fruta, do sujeito absoluto.4

Segundo Marx, o idealismo desses filósofos os leva a ignorar as determinações do mundo real existente, concebendo a realidade como produto do pensamento. Rejeitam o enfrentamento do real enquanto objeto do conhecimento, esgueirando-se por um caminho onde “a especulação cria seu objeto a priori”, e é “[obrigada] a construir como absolutamente necessárias e gerais as determinações mais fortuitas e individuais do objeto”.5 Em definitivo, para essa corrente, no processo de conhecimento não comparece o mundo objetivo independentemente do sujeito enquanto agente do ato cognoscitivo.

Configura-se, assim, a inconciliável diferença entre o pensamento especulativo e os pressupostos metodológicos desenvolvidos por Marx. Para ele, o objeto real efetivamente existente se diferencia ontologicamente do objeto do conhecimento. Contudo, cabe à subjetividade capturar o real sem que, por isso, com ele se identifique. À subjetividade resta extrair do mundo objetivo todo o conhecimento necessário à reprodução social.

Em um conhecido texto de sua maturidade, os Grundrisse, Marx trata de como a subjetividade captura gnosiologicamente o real. Inicia assinalando que, no estudo da Economia Política, ao se utilizar o conceito de População sem determinar seus elementos constitutivos, este não passaria de uma abstração caótica e vazia de significado real. A “representação plena” estaria volatilizada e carente das determinações indispensáveis ao conhecimento do objeto pela consciência.

Somente com a decomposição do conceito em todos seus elementos constitutivos, tais como as classes, e, nestas, por conseqüência, destacando-se como elemento indissociável o trabalho assalariado, que é subordinado ao capital; capital, que se reproduz com a divisão do trabalho, e que tem como pressuposto conceitos como valor, preço, dinheiro, e assim por diante, é que se poderiam compreender o significado real de População e a complexa articulação entre os diversos conceitos subjacentes.

Ao se avançar nesse processo de “abstrações cada vez mais sutis”, continua Marx, poder-se-ia “alcançar as determinações mais simples”. Com base nelas, empreende-se o retorno à categoria População, não mais a encontrando como uma simples representação caótica do conjunto, mas sim como “uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações”. Nesse processo de determinação e particularização que resgata a concreticidade do objeto, este “Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o verdadeiro ponto de partida”.6

Para Marx, portanto, no processo de conhecimento do mundo objetivo, o contato com o imediatamente dado revela um todo caótico e desconhecido. Ao ser representado na consciência, esse todo carece ser decomposto num contínuo processo de análise e analogia com o já conhecido, para alcançar, via “abstrações cada vez mais tênues”, os conceitos mais simples entendidos como um passo a caminho das “generalizações determinadas, ou seja, delimitadas no conteúdo e na extensão”.7

A partir dos conceitos mais simples, num movimento de retorno – segundo Chasin, “no trânsito do abstrato ao concreto” -, um processo de síntese possibilita a recuperação do objeto concreto; possibilita que se alcance uma “rica totalidade com múltiplas determinações e relações”, obtendo-se assim “a reprodução do concreto pelo caminho do pensamento”. É o método das duas vias (ida e volta), “manifestamente, o método científico correto”, segundo Marx.8

Essa passagem dos Grundrisse é reconhecidamente muito difícil, e sua interpretação tem provocado acirrados debates. O que faremos neste artigo é seguir a exploração que dela fez Lukács – em especial do aspecto da subjetividade nesse processo de captura do real.

A via de acesso da consciência ao real

O mundo objetivo é composto de infinitas mediações, compreendidas “enquanto cadeia viva entre a singularidade e a universalidade”.9 À consciência, elemento ativo no processo de reprodução social, é colocada a necessidade de produzir o conhecimento das situações singulares, das generalizações universais e do modo particular em que se articula o mundo objetivo. Caso assim não proceda, fica inviabilizada a realização das finalidades previamente concebidas pela consciência no ato do trabalho (locus da síntese de teleologia e causalidade)10; esta torna-se incapaz de gerar o novo, e, portanto, de assumir um domínio cada vez mais avançado da natureza.

Para Lukács, essa necessidade impõe ao sujeito uma captação muito mais precisa da objetividade e, conseqüentemente, uma expressão mais exata que recolha precisa e inequivocadamente as determinações específicas do objeto de que se trata, mas abarcando ao mesmo tempo as conexões, relações, etc., que são imprescindíveis para a execução do processo de trabalho.11

O movimento contínuo da realidade objetiva coloca sempre novos desafios à subjetividade, exigindo que o processo de conhecimento se renove a partir do contato com o objeto imediatamente dado. No cotidiano, é comum nos depararmos com algo desconhecido e, portanto, para a consciência carente de determinações -, onde o imediatamente dado é visto como uma singularidade indeterminada. E, por ser indeterminada, é indizível.

É necessário, então, que ele seja analiticamente decomposto, relacionado a categorias universais já conhecidas, para que a subjetividade, descobrindo as suas mediações, possa identificar suas “legalidades particulares e gerais”.

Num primeiro momento, na ausência dos traços de universalidade necessários à determinação do imediatamente dado, encontrando-se ele impossibilitado de ser referenciado pela linguagem12, tem-se a sensação de perda do objeto. Escapa à consciência o domínio imediato do novo. No entanto, impulsionada pelo movimento real das coisas e premida pela necessidade de garantir a sobrevivência e desenvolvimento humanos, torna-se inevitável o enfrentamento do real.

Nesse primeiro momento do processo gnosiológico, com base no conhecimento já adquirido na vivência histórico-social do sujeito, o pensamento utiliza-se da intuição para a escolha das possibilidades de investigação sugeridas pelo objeto, e para a busca das alternativas que viabilizem sua identificação, ou sua diferenciação.

O sujeito inicia o contato com o objeto singular num intenso exercício de abstração e mentalização. Nesse momento, a consciência tem na abstração o locus da negação do singular imediato. A abstração, como instrumento do pensamento, passa a negar a indizibilidade do singular num crescente. processo de generalização sempre mais determinante, através da utilização de “abstrações isoladoras”.13 Estas, por sua vez, permitem que as noções iniciais promovidas pela análise sejam organizadas e selecionadas, ao mesmo tempo que superadas, quando do percurso pelo campo das mediações no sentido da particularidade.

No uso das abstrações isoladoras, tanto as semelhanças como as diferenças assumem igual importância, devendo-se evitar a homogeneização simplificadora do real e a violentação de sua natureza objetiva. Assim, no desenvolvimento das generalizações dos traços sublinhados e na determinação da multiplicidade de características intrínsecas ao objeto mentado, preserva-se a unidade do diverso.

Ao embrenhar-se a subjetividade no processo de abstração do singular indizível apresenta-se um problema. Diversas generalizações tornam-se igualmente possíveis, sendo que nem todas levam à aproximação do concreto pelo pensamento. É, portanto, imprescindível que se alcance um nível de abstração “razoável”, que se pressuponha que “a intensificação do conhecimento da singularidade [seja], por sua vez, uma função de generalizações afortunadas, muito abarcantes, de ampla aplicabilidade, etc.14 O grau de razoabilidade é percebido pela subjetividade através da mediação da práxis social, e na objetivação do trabalho que se torna, assim, o ato probatório da realização final de um acertado processo de abstração e de especificação das noções inicialmente formuladas.

Em suma, o processo de conhecimento empreendido pela subjetividade depara-se, num primeiro momento, com a representação caótica do todo, que passa a ser “volatilizada em uma determinação abstrata” com base na definição de seus traços mais especificadores. Caminha, portanto, no sentido da generalização e vai afastando-se daquele estado indizível até atingir os conceitos simples.

Esse momento, sublinhemos, refere-se ao caminho de ida. O segundo momento é aquele em que “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto”; constitui-se no caminho de volta ao objeto mediante a conquista da concreticidade antes oculta.

Argumenta Lukács que a quebra da indizibilidade da singularidade processa-se num dinâmico ato de negação, ao isolá-la abstratamente de sua materialidade imediata e defini-la em cada vez mais elaborados conceitos; e de reflexão, pois o impulso originário vem da realidade exterior e imediata, sendo que ambos os movimentos exigem que o retorno seja não mais àquele singular imediato, mas sim ao concreto pensado imbuído das mediações necessárias à sua generalidade determinada, ou seja, à forma de particularização do objeto.

Nesse momento do processo de aproximação ao real, mesmo de posse de um certo grau de determinação e dos conceitos simples, permanece ainda insatisfeita a necessidade de determinar a qual dado objeto se refere, “mesmo quebrada a indizibilidade do singular com a abstração dizível, [isto] ainda não é suficiente para determinar este singular, mas sim permanece referido a uma infinidade de estes sem resgatar sua concreticidade. As abstrações processadas restringem-se a generalizações indeterminadas”. Caso se parasse por aqui, “O concreto permaneceria oculto e a abstração dizível manter-se-ia dizendo sempre a sua mesma pobre abstração.15

Coloca-se assim como necessário dar o próximo passo no caminho do conhecimento do real, iniciando-se a síntese das múltiplas determinações, ou seja, o caminho de volta ao concreto pensado.

A abstração passa a negar-se ao alcançar um nível de generalização mais determinada, fazendo com que o pensamento percorra o campo de mediações entre a singularidade e a universalidade no sentido de aproximação do concreto, ou melhor, da particularidade enquanto veículo do determinado: “enquanto categoria portadora da ‘função criadora de determinação’, seja delimitando o universal, seja expandindo o singular.”16 No exercício do conhecimento, por esse caminho de volta, estará superada a fase de contato inicial com a individualidade imediata do ser, e realizada, na processualidade concreta vivenciada pela consciência, a determinação efetiva das especificidades do ser. Ter-se-á não mais uma representação caótica do todo, mas uma rica totalidade de determinações, bem como a identificação, pelo pensamento, das múltiplas e diversas relações do real concreto.

Bases ontológicas da Particularidade

O modo de funcionamento do pensamento no conhecimento do real, no entanto, não significa que o real tenha como momento fundante o pensamento. Para Lukács,

A consciência se vê constrangida a comprovar e conceber mediações porque a vinculação dos objetos do mundo externo se baseia em grande medida nelas. A contraposição e a vinculação dialética da imediatez e a mediação existem também objetivamente, com independência da consciência.17

A exigência de o conhecimento tratar da singularidade18 em sua imediatez, dar-lhe voz ao projetá-la no plano da generalidade e de, ao percorrer o campo das mediações portador das determinações próprias ao objeto, retornar a ele como o concreto no pensamento é originária no próprio real. É a manifestação abstrato-subjetiva de como o mundo, externo à consciência, se comporta.

Esse modo de operar da subjetividade, além de refletir a lógica objetiva da particularidade, também é determinado por condicionantes histórico-sociais que circunstanciam a efetividade das abstrações e concreções por elas processadas. Segundo Lukács, “o grau dessa aproximação [da consciência ao real] está determinado pelas necessidades e as possibilidades do pensamento em cada estádio da evolução históricosocial.”19

Necessidades tais colocadas pela reprodução social que exigem que a consciência torne crescentemente visível o que lhe é desconhecido (e, portanto, oculto na sua imediatez), como condição à apreensão das particularidades presentes na realidade. E possibilidades, fomentadas pelo conhecimento e pela riqueza material acumulados social-historicamente, que proporcionem – às abstrações efetivadas pela consciência – a exploração de forma exaustiva e proveitosa das relações existentes no mundo objetivo com o fim de resgatar a particularidade do ser.

Na continuação do mesmo texto, Lukács ressalta que a afirmação acima carece de precisão quanto a seus efeitos, pois

Quando a subjetividade – ainda que condicionada histórico-socialmente – projeta efetivamente na realidade suas próprias necessidades e seus próprios desejos e os põe como realidade objetiva, se apresentam aquelas contradições […], nas quais, caracteristicamente, o comportamento antropomorfizador não desemboca em uma reprodução da particularidade, senão em uma generalidade subjetivamente fundada.20

Há uma clara distinção a ser ressaltada entre a necessidade projetada no plano da subjetividade e aquela colocada pela realidade objetiva. A imersão “dos próprios desejos” na realidade objetiva, compondo parcialmente essa objetividade, redunda em um comprometimento da captura da concreticidade do existente. Esse passa a ser constituído pela “generalidade subjetivamente fundada”; dissolve-se a “reprodução da particularidade” numa simples abstração etérea.

Em Lukács, é fundamental a afirmação de que a dimensão subjetiva da lógica da particularidade se refere à forma em que opera a consciência ao conhecer o objeto; objeto distinto dela e existente independente de seu prévio conhecimento. O objeto é dado no mundo real; mesmo com o trabalho, através do qual a ação consciente do sujeito pode gerar objetividades antes inexistentes, ainda assim permanecerão preservadas a exterioridade e a autonomia do ser ante o pensamento. O pensamento precisa, para iniciar o processo de conhecimento, do estímulo do próprio real; para Lukács, sentido inverso ao defendido por aqueles que concebem o real como produto de conceitos e valores fecundados pela consciência.

A partir de Marx, segundo o filósofo húngaro, está descartada a possibilidade de se conceber o objeto como produto do pensamento, num movimento de abstração isento de qualquer vinculação com a realidade. Há uma clara inversão no sentido defendido pelos idealistas, de origem hegeliana ou não, quanto à articulação do real com o pensamento.

O imediatamente dado no mundo objetivo constitui-se no ponto de partida do pensamento. Mas este, para conhecer o real, deve acionar seu poder de abstração e quebrar a indizibilidade imediata do ser atribuindo um caráter expansivo à singularidade; deve precisar os traços de universalidade na: relação com o mundo concreto. E, na recuperação das mediações existentes entre os pontos extremos – da singularidade e da universalidade -, deve recuperar o real enquanto concreto no pensamento.

De maneira enfática Lukács afirma, a respeito dos três graus de generalidade, que

não basta estabelecer que a natureza objetiva do mundo nos impõe a diferenciação entre singularidade, a particularidade e a generalidade, ou seja, que a afirmação humana dessas categorias é um elemental processo ditado pelo Em-si; há que compreender ademais que também a conexão dessas categorias é um processo elemental determinado pela objetividade.21

Isto posto, verifica-se uma relação dialética entre o objeto em-si e o produto do pensamento – uma reciprocidade entre o real e o conhecimento adquirido pela consciência.

Cabe salientar que, sempre segundo Lukács, a apreensão do real pelo pensamento consegue apenas uma aproximação do objeto e não uma reprodução perfeita, pois sua concreticidade é resultado de uma constante tensão entre a singularidade e a universalidade, que compõem um complexo campo de mediações constituído de uma gama de possibilidades altamente dinâmicas, conferindo a cada objeto um caráter particular e único. Portanto, o objeto é impossível de ser conhecido como um ser estacionário e alheio à pulsão dialética entre as categorias da generalidade.

Tanto o objeto como a subjetividade já serão outros no momento seguinte ao conhecimento inicial. Novas relações serão consumadas, sendo impossível a fixação de um único momento como o ponto final do conhecimento. E, ao tomar a subjetividade posse daquelas determinações do real, já se encontra capaz de realizar novas associações e gerar novos conhecimentos e novas objetividades.

Portanto, dada a forma, de ser do mundo real, é impossível a total identidade do sujeito e do objeto. À subjetividade só resta alcançar uma cada vez mais intensa aproximação do objeto através de um eficiente domínio de suas complexas determinações.

O processo “de ida e de volta” como forma genérica de proceder da subjetividade concebida como ontologicamente distinta do objeto: este é o núcleo decisivo da leitura de Lukács da passagem dos Grundrisse acima referida.

Com a lógica da particularidade ficam superadas as diversas posições filosóficas que oscilam entre os limites ao conhecimento do mundo objetivo pelo homem impostos pela fetichização do singular, ou do universal. E, também, ficam superadas as posições à Kant, que reduzem o objeto ao mero fenômeno subjetivamente produzido. Com isso, fundamenta-se a capacidade dos homens para conhecer e, portanto, transformar o real. E, com todas as mediações cabíveis, de assumir conscientemente os destinos de sua própria história.

1Capítulo publicado na coletânea : Lessa, S. (org.). Habermas e Lukács: método, trabalho e objetividade. Maceió : EDUFAL, 1996.

2Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas – 1996.

3Marx, C., Engels, F. La Sagrada Família. México: Ed. Grijalbo, 1960, p. 125.

4Idem, ibidem, p. 124.

5Idem, ibidem, p.126.

6Marx, K. Grundrisse (edição em espanhol). Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1973, p. 21.

7Chasin, J. “Lukács: Vivência e Reflexão,da Particularidade”. In Escrita/Ensaio, 2. ed., São Paulo: Ed. e Livraria. Escrita, n.9, 1981, p. 60.

8Marx, op. cit., p. 21.

9Chasin, op. cit., p. 59.

10O Trabalho, na concepção marxiana, é o momento da objetivação de uma prévia-ideação (teleologia) orientada à modificação da materialidade existente na esfera natural e social (causalidade). Sobre a importância decisiva da esfera gnosiológica para o trabalho ver Lessa, S. “A Centralidade do Trabalho na Ontologia de Lukács”, Tese de Doutorado, UNICAMP, 1994.

11Lukács, G. Estetica. V.3. Barcelona-México: Ed. Grijalbo, 1967, p. 201.

12De acordo com a concepção lukácsiana, a linguagem serve de veículo às conexões inicialmente determinadas no processo de generalização das intrínsecas características do ser. Mesmo a mais primária afirmação lingüística pressupõe a presença de certo grau de universalidade, permitindo assim a transformação da mudez do objeto singular, considerada sempre a totalidade de suas mediações, em algo cada vez mais determinado.

13Em sua Ontologia, Lukács se refere às abstrações isoladoras afirmando que “Quer tomemos a própria realidade imediatamente dada, ou mesmo seus complexos parciais, o conhecimento imediatamente direto da realidade imediatamente dada resulta em meras representações. Estas, por isso, devem ser melhor determinadas com -a ajuda de abstrações isoladoras.” Lukács, G. Per una Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Ed. Riuniti, VA, 1976-81, p. 285.

14Lukács, G. Estetica. V.3. Barcelona-México: Ed. Grijalbo, 1967, p.206.

15Chasin, op. cit., p.64.

16Idem, ibidem, p. 65.

17Lukács, op. cit., p. 213.

18Afirmação também válida no sentido do universal ao campo de mediações da particularidade, pois, segundo Lukács, ‘o determinante e o determinado não se enfrentam como dois mundos que se excluíram; o processo de determinação consta […1 da reciproca mutação entre ambos.’ (Idem, ibidem, p. 211).

19Idem, ibidem, p. 206.

20Idem, ibidem, p. 232

21Idem, ibidem, p. 200.

CAMINHOS DE PAULO FREIRE

Entrevista dada a

J. CHASIN,

RUI GOMES DANTAS

VICENTE MADEIRA

REVISTA ENSAIO – Filosofia/Política/Ciência da História, nº 14, 1985.

Entrevista

Foi uma conversa. Longa conversa de horas. Calorosa e produtiva. Contudo, não pode ser dito que se tratou de um papo curtido de velhos amigos. Seria impróprio de duas maneira. Primeiro, porque não foi um taramelar sem destino; segundo, porque irreal e pretensioso: a maioria dos interlocutores encontrava e dialogou com o entrevistado pela primeira vez.

Até mesmo por isso, como homenagem ao “primeiro encontro”, foi dispensada a polêmica e o lado enfatizado recaiu sobre o depoimento. Outro modo de fazer a já característica Entrevista de Capa da ENSAIO.

Janeiro findava e, como é peculiar à sua rotina, Paulo Freire estava entre um retorno e uma partida: voltava de um curso no interior paraibano e estava às vésperas de saldar um compromisso no exterior.

É a dinâmica geográfica de seus caminhos, as outras o papo revela, pelo menos em parte. E com o sabor do gesto e da tônica por ele ciosamente preservados e cultivados, e que, parece, década e meia de exílio só fez acentuar. Gesto e tônica que melhor não poderiam ser traduzidos com carinho do que pela fórmula que as identifica como dimensões de um verdadeiro profeta do sertão internacional.

A malha de seus caminhos, não por culpa sua, tem desnorteado não poucos de seus adeptos e outro tanto de seus críticos. E muitos passaram a ter ou a rejeitar o Paulo Freire que lhes convém.

Gostaríamos de pensar que este colóquio possa ser uma contribuição, por modesta que seja, aos adeptos e críticos que não se satisfazem, a não ser com a autêntica personalidade, política e intelectual, daquele que nos honrou e proporcionou grande satisfação ao atender o convite para esta entrevista.

J. Chasin – É obviamente desnecessário fazer sua apresentação. Há largo conhecimento de sua figura e de seu trabalho. Contudo, sempre há o perigo do conhecimento fracionado, e o Brasil é especialista em “fracionar” pessoas, Então, eu começaria com algo muito simples, mas muito importante, especialmente para você mesmo e, sem dúvida, para a curiosidade do leitor: onde você nasceu e como é que foram esses tempos todos da infância, da juventude?

P. Freire – Eu acho uma boa pergunta para a gente começar. Eu nasci, relativamente perto da tua casa. Nós aqui estamos na praia do Cabo Branco em J. Pessoa e eu nasci, a uma centena de quilômetros, no Bairro de Casa Amarela, Recife, em 1921. Como agora, sempre que venho para o Nordeste, para Recife, passo em frente à casa onde nasci, que continua de pé, do mesmo jeito. É que houve um certo litígio, em torno da casa ou do terreno, algo assim, o que acabou por preservá-la. Senão já teria sido derrubada e no seu lugar haveria um prédio de apartamentos. Esta casa fica à Rua do Encanamento, 724. Dali eu saí com minha família, ou melhor fui saído… Eu costumo dizer, depois da minha experiência de exilado, que meu primeiro exílio não foi depois de 64, mas foi em 32, quando a minha família, em face da crise de 29, fugia do Recife e aí nós fomos morar numa cidadezinha próxima – na época uma viagem até chegar lá, 18 Km – , que se chama Jaboatão. Essa saída foi traumática porque havia toda uma convivência entre o menino e aquele seu primeiro mundo, aquele chão, o canto dos passarinhos. Foi uma saída tática, mas a crise continuou nos acompanhando em Jaboatão.

J. Chasin – Essa crise, concretamente, como foi no interior de sua família?

P. Freire – Meu pai, Temístocles Freire, cuja presença me marca até hoje, morreu em 34. Rio-grandense-do-norte, era capitão da polícia militar, tendo sido inicialmente sargento do Exército. Quando eu nasci, ou pouco depois, ele ficou muito doente e teve que se reformar. Os vencimentos dele, na época, eram bastante limitados. Havia, no entanto, um tio nosso, irmão da minha mãe, um comerciante que tinha casa de estivas no Rio de Janeiro, que ajudava a família. Com a crise de 29, que repercutiu dramaticamente em cima dele, teve que diminuir a ajuda que dava. Foi por isso que se perdeu a casa onde nasci, era dele e ele a perdeu, quando entrou em concordata. Isso pelo menos é o que minha memória registra. Seu nome era Rodovalho Neves. Foi, inclusive, um dos poetas pernambucanos conhecidos por seus poemas de cunho pessimista, negócio bem do tempo. Assim, a situação ficou muito difícil para nós sem a ajuda que ele dava antes, pois éramos 5 filhos e mais a minha avó. Mas, em Jaboatão eu tive algumas experiências que me foram muito importantes. Lá eu tive minhas primeiras aventuras, edílios…

J. Chasin – Você se lembra da primeira namorada?

P. Freire – Olha, engraçado, em matéria de namorada…

J. Chasin – Se não lembra, não faz mal. Não interessa o nome…

P. Freire – Não, não. Interessa, eu vou te contar. A primeira experiência, talvez, assim, de uma coisa estranha entre mim e outra pessoa tenha se dado com uma menina, num cineminha, quando nós tínhamos possivelmente 5 ou 6 anos, se a minha memória não está me traindo, inventando coisas… Eu me lembro dessa menina com quem me encontrava, mediado por uma cerca de pé de pitanga…

J. Chasin – Tá bonito…

P. Freire – Não sei se estarão aí todas as razões porque eu sou apaixonado por pitanga até hoje. O seu nome eu não me lembro mais, mas me lembro claramente dessa experiência. Mas, logo em seguida, eu já com os meus 8 ou 9 anos, uma outra menina veio morar na mesma casa onde morava a primeira. E eu, garotão, tinha uma paixão enorme por essa outra menina que, coincidentemente, tinha o mesmo nome que a minha mulher – Elza. Mas ela nunca soube da minha paixão. Íamos juntos à escola, ela era uma menina graúda, alta. Toda noite eu fazia os meus planos de como é que eu ia me declarar. Me lembro, me lembro que havia sempre em mim frases já estabelecidas, com as quais eu começaria a minha declaração de amor. Eu prometia a mim mesmo que, no dia seguinte, eu diria a ela: “Elza, você é bonita!” E nunca disse.

V. Madeira – Eu gostaria de fazer uma pergunta sobre essa fase de sua vida que, talvez, ajude a entender melhor a sua obra. Nesta, além de um tom pedagógico, há um tom presbiteral, no sentido genuíno do termo grego – irmão mais velho. E isso pode estar ligado a uma coisa que, nas famílias do Nordeste, era muito atribuída à vocação sacerdotal. Havia esse apelo, que a dificuldade econômica das famílias aumentava, na medida em que a Igreja oferecia uma série de facilidades para a formação eclesiástica. Tudo isso favorecia ao florescimento dessas vocações. Como você “transou” na sua infância, na sua adolescência este apelo?

P. Freire – Interessante, Vicente. Conversando com D. José, recentemente, eu contava a ele que, quando eu era menino, meus pais perguntavam: “meu filhinho, o que você quer ser quando for homem?” E as perguntas são sempre feitas aos homens, é o marco machista da nossa cultura. Mas, eu me lembro, quando meus pais faziam esta pergunta e antecipavam algumas hipóteses – “você gostaria de ser médico? engenheiro? isso ou aquilo?”, eu admitia sempre que cada uma dessas hipóteses era provável. Mas se, de repente, me perguntavam se eu queria ser padre (isso me foi contado pela minha mãe), eu dava quase um salto e dizia um não bem grande. E se perguntavam: “porquê?” Eu dizia, “porque não casa!”

J. Chasin – E o que era o casamento para você nesta fase?

P. Freire – Para responder a essa pergunta, corre-se o risco de presentificar. Mas esta sempre se dá e, às vezes, termina tomando conta do passado, de uma tal maneira que você recusa o que foi ou o que deveria ser, em função da sua presentificação. Eu observo que muitas críticas, que me fazem, chegam a esse exagero de presentificar e esquecer de 1963, esquecer o que houve em 63, e querer que em 63 eu tivesse o procedimento que as pessoas, que me criticam, hoje teriam e gostariam de ter. Então, eu não quero fazer o mesmo com a sua pergunta. Mas, a impressão que eu tenho é que para mim, substancialmente, casamento era a possibilidade de estar com uma mulher.

J. Chasin – Mas havia já no menino, na criança, essa dimensão que o rapaz e o homem viriam a vivenciar, digamos, a sensibilidade do que tudo isso representa?

P. Freire – Olha, eu não quero ser muito categórico, mas acho que havia, e possivelmente porque isso tinha a ver um pouco com uma experiência muito própria, muito específica que eu vivia. A de ter um pai muito próximo de mim, presente, porque aposentado, em função de um aneurisma no abdômen. Na época não havia as soluções cirúrgicas de hoje. Então ele ficava muito dentro de casa e tinha um relacionamento extraordinário com minha mãe. Então, o modelo me deve ter marcado. Para vocês verem como isso me marcava, um dia eu apenas pressenti que os dois estavam arengados e isso me deu insegurança. É como se tivesse começado a rachar o chão num terremoto, e eles perceberam e foram afetivos comigo. Depois, devem ter resolvido o problema legítimo da arenga, ou melhor, devem ter resolvido a arenga legítima. Afinal de contas, dizendo isso, eu não estou sugerindo aos pais jovens, prováveis leitores desse papo nosso, que não arenguem nunca, porque isso é falso. Pelo contrário, eu estou sugerindo que arenguem mesmo, se há razão de arengar, porque o conflito dos dois pode partejar a consciência do filho. Não há porque fugir do conflito.

J. Chasin – Nem escondê-lo.

P. Freire – nem escondê-lo de maneira nenhuma. O que eu quis foi sublinhar o clima de estabilidade que eu vivi e que não é muito generalizado.

V. Madeira – Eu jamais esperaria que você tivesse sido filho de um militar. É muito possível que outra característica de seu pai fosse um perfil pouco identificado com a rigidez da disciplina.

P. Freire – Eu não sei se vou ser justo com meu pai, ou se vou exagerar o profundo querer bem que me marca ainda hoje, depois de 50 anos da morte dele. Mas ele viveu intensamente a tensão entre a autoridade dele e a liberdade dos filhos. O testemunho que ele deu a nós (às vezes eu converso com meus irmãos sobre isso) foi o de quem viveu muito bem essa tensão.

V. Madeira – Vocês eram quantos?

P. Freire – Éramos quatro filhos, três homens e uma mulher. E eu era o mais novo.

V. Madeira – Por que você tem o nome Reglus? Por que Paulo Reglus Freire?

P. Freire – Taí uma pergunta que nós teríamos que fazer a meu pai.

V. Madeira – Eu sempre vi uma ligação disso com a África.

P. Freire – Olha, eu não sei. Pode ser um pouco de autoritarismo, em função da autoridade do Régulo, não? Não sei, por outro lado, até que ponto foi uma extravagância do meu pai, ou quando foi me registrar pronunciou Régulo e o cara do cartório, que nunca ouviu falar nisso, escreveu Reglus. Bem, essa seria a resposta que eu te daria. Isso ficou me marcando nos documentos oficiais. Ninguém me conhece por Reglus e eu não escrevo nunca isso, a não ser quando tenho que escrever meu nome inteirinho.

J. Chasin – Mas, esta sua casa da infância, era então gostosa, agradável, afetivamente respaldante…

P. Freire – A casa da gente era, num sentido largo, isso que tu disseste, mesmo quando, em muitas oportunidades, a gente começava o dia sem muita certeza…

J. Chasin – … que ia comer.

P. Freire – Mesmo assim, gostaria de sublinhar, em primeiro lugar, aos prováveis leitores desse papo que, ao me referir a isso, não estou procurando, de maneira nenhuma, como é que eu diria, arranjar um título para mim, um título de quem quando criança sofreu. Eu não estou querendo com isso dar nenhum cartão de visita de menino faminto ontem e grande revolucionário hoje. Nada disso, meu Deus do céu! Tenho, inclusive, que me cuidar melhor com essa palavra – revolucionário. Um baita respeito a isso! E, em segundo lugar, também não gostaria de dar a impressão de que vivi uma infância demasiado dramática. Sobretudo quando a gente conhece esse Nordeste, quando a gente vê uma quantidade crescente de crianças que não comeram, não comem e não sabem quando vão comer. A dureza da minha infância, perto dessas crianças, é um fim de semana em Tambú. Esse passado foi um acidente que se deu na família, considerando a posição de classe dela.

V. Madeira – Você estudou em escola pública…

P. Freire – Eu fiz a escola primária exatamente no período mais duro da fome. Não da “fome” repito intensa, mas de uma fome suficiente para atrapalhar o aprendizado. Agora, quando terminei meu exame de admissão, era alto, grande, anguloso, feio. Já tinha esse tamanho e pesava 47, 48 quilos. Usava calças curtas, porque minha mãe não tinha condições de comprar calça comprida. E as calças curtas, enormes, sublinhavam a altura do adolescente. Eu consegui fazer, Deus sabe como, o primeiro ano de ginásio com 16 anos. Idade com que os meus colegas de geração, cujos pais tinham dinheiro, já estavam entrando na faculdade. Fiz esse primeiro ano de ginásio num desses colégios privados, em Recife; em Jaboatão só havia escola primária. Mas, minha mãe não tinha condições de continuar pagando a mensalidade e, então, foi uma verdadeira maratona para conseguir um colégio que me recebesse com uma bolsa de estudos. Finalmente ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz e o dono desse colégio, Aluísio Araújo, que fora antes seminarista, casado com uma senhora extraordinária, a quem eu quero um imenso bem, resolveu atender o pedido de minha mãe. Eu me lembro que ela chegou em casa radiantíssima e disse: “Olha, a única exigência que o Dr. Aluísio fez é que você fosse estudioso”. Eu, poxa, eu gostava muito de estudar e fui então para o Colégio Oswaldo Cruz, onde me tornei, mais adiante, professor. Aluísio Araújo já morreu, mas Elza e eu tivemos a grande satisfação de recebê-lo e à mulher, durante 15 dias, em nossa casa em Genebra, em 1977. E, em 1979, depois de quase 16 anos de exílio, quando viemos visitar o Brasil, estavam os dois, Aluísio e Genovive, no aeroporto em Recife, nos esperando. Ele já bem acabado, velhinho, e jantamos juntos depois. Na nossa volta para Genebra ele faleceu. E eu não tenho dúvida de dizer aqui, nesta entrevista, que se não fossem eles possivelmente esta entrevista não estaria sendo realizada. Foram eles que criaram as condições para o meu desenvolvimento… É evidente que eles não poderiam ter me fabricado, as pessoas não são fabricadas, mas a dimensão de minha experiência individual tem a ver muito com eles.

J. Chasin – Eles ensinavam?

P. Freire – Ele ensinava latim e português e ela ajudava-o na administração do colégio, mas não ensinava. Ele era, ao mesmo tempo, um homem rigoroso e afetivo. Às vezes, eu acho, que ele fiscalizava demasiado a sua afetividade, como se ele tivesse medo de querer bem.

J. Chasin – A primeira atividade que você exercitou foi a de professor de língua portuguesa?

P. Freire – Sim e acho que isso tem muito a ver com minha formação toda, com a minha preocupação com o problema da linguagem.

V. Madeira – Sua graduação foi em Letras?

P. Freire – Não, não. A minha graduação foi em Direito. Só não foi em Letras porque não havia Faculdade de Filosofia. Porque a coisa está dentro de um certo gosto que tenho de manusear, de manejar, de tratar a linguagem. Daí uma grande preocupação com a sintaxe popular, com a questão da semântica popular, com a questão da ideologia, com a questão da linguagem e classes sociais. Mas isto tudo já estava mais ou menos embutido, sem explicitação, já na minha adolescência. Eu me lembro de que andei, aos 19 anos, lendo Saussure, Vossler, Matoso, Câmara. Para estudar linguística, eu teria que ter ido para São Paulo. E eu não tinha condição de ir. Na época, eu tinha que trabalhar, já dava minhas aulas de português para ajudar em casa. Mas se eu tivesse ido naquela época para São Paulo, eu sei que minha mãe, meus irmãos aguentavam e eu me virava por São Paulo e faria o curso lá. Mas, acontece que fazer isto, naquela época, teria significado uma opção: a opção de não casar. Eu sempre dizia, em primeiro lugar, mesmo na mocidade, que casamento não atrapalha a formação científica de ninguém e, em segundo lugar, se atrapalhar, eu opto pelo casamento.

J. Chasin – Aprofunda isso!

P. Freire – Eu nunca entendi que casar significasse preocupação demasiada para sustentar uma família, porque já achava, na época, que a família não é sustentada exclusivamente pelo marido, mas a mulher também trabalha, a mulher realiza. Eu nunca entendi também que o fato de ter um filho, uma filha te tirasse do estudo. Um filho, uma filha tiram do estudo, possivelmente, menos do que a televisão ou uma excelente pinga. Mas aí meu raciocínio era o seguinte: admitamos, porém, que o casamento pode vir a atrapalhar a tua formação. Então deixa a tua formação científica em casa. Vê como isso coincide com a resposta que eu dei, aos 5 anos de idade, quando me perguntaram se eu queria ser padre e eu dizia que não, porque não casa. Quer dizer, eu sempre pus o estar com a minha mulher, viver com minha mulher, eu sempre pus isso não como o dono dela, mas o de participar com ela da criação, isso a gente vai saber depois, de um pedaço de mundo.

J. Chasin – Uma espécie de experiência matrizadora, fundante, sem a qual a vivência de toda uma existência ficaria mais pobre, caso não ocorresse. É algo neste sentido?

P. Freire – Exato. Tu formulaste agora muito melhor do que eu. Tu disseste o que eu gostaria de ter dito. É isso, é isso. Quando eu dou uma olhadela na minha vida, apesar das coisas que eu não fiz, porque não soube fazer, puxa rapaz! Mas eu não estou triste, me casei, ganho menos que a Elza…

J. Chasin – E não teve nenhum drama de novela…

P. Freire – Não foi uma novela de maneira nenhuma. Ainda hoje anda havendo aí problemas, porque o marido ganha menos que a mulher e se dá o diabo dentro de casa. Isso é um absurdo! Tu sabes que essa é uma das coisas contra as quais, nós homens desta região, precisamos lutar. Nós precisamos começar a dizer à geração jovem que é necessário combater essa expressão do autoritarismo dessa sociedade, que é o machismo. Nós não podemos, como homens, não podemos tomar a bandeira na briga das mulheres, porque seria uma forma sutil de continuar macho. Mas nós temos, nós temos é que apoiá-las nessa briga. E tem mais, e temos que entender que, inclusive nos momentos primeiros dessa briga, elas correm também o risco de serem ingênuas, e todos os que brigaram no primeiro momento correram o risco da ingenuidade.

J. Chasin – E de fazer bobagem…

P. Freire – Isso. De fazer bobagem. Mas é um direito de quem briga. E o que é que nós homens fazemos quando elas, quando as mulheres na sua luta fazem alguma bobagem? Nós ridicularizamos e continuamos a ser machistas.

J. Chasin – Você já referiu várias vezes a questão do machismo, de ser macho… Eu pediria que você alongasse sobre isso. Que é machismo?

P. Freire – Eu acho que o machismo, como já disse, é uma das expressões do autoritarismo, que na sociedade brasileira permeia as classes sociais. São quase 485 anos… Outro dia, há dois meses atrás, um jornalista da BBC de Londres, passando pelo Brasil, foi a São Paulo e me pediu uma entrevista. E certamente ele riu muito, porque me perguntou o que é que eu achava, qual era a minha opinião em face desses 20 anos de autoritarismo no Brasil? Eu disse, olha, eu acho que a formulação da pergunta não está muito correta: é em face desses 485 anos. Porque o golpe de estado brasileiro, na verdade, não inventou nem inaugurou o autoritarismo no Brasil. Agora, uma coisa que ele fez, e que a história está registrando e reconhecendo, é sustentar o sistema capitalista, dando uma contribuição extraordinária. Essa contribuição não vai ser esquecida na história.

Acho que o machismo no primeiro momento é isso, quer dizer, é uma expressão, é um momento, é um aspecto desse autoritarismo. Em segundo lugar, é uma atitude, implica uma atitude, um comportamento, uma ideologia autoritária de discriminação do outro sexo em favor do masculino. E vê bem, o machismo existe inclusive quando o homem é dominado pela mulher. É apenas uma experiência ao contrário, porque do ponto de vista social ela pode mandar no marido, mas ela continua oprimida, ela continua diminuída. Evidentemente, é uma bobagem pretender fazer uma análise de classe aí, e considerar mulher como classe, não dá. Seria uma bobagem. Mas, do ponto de vista da superação do machismo, eu teria dificuldade de entender a questão sexual e a tensão que está envolvida, no machismo, fora de uma compreensão das classe sociais. Como conclusão, em primeiro lugar, para mim, no sistema capitalista é inviável a superação disso. Segundo, só no sistema socialista se dá a única possibilidade de superar a tensão sexual e a tensão racial; só, porém, se os revolucionários resolverem também assumir essa briga. Entende? Quer dizer, a reorientação da economia, do ato produtivo em si, pra mim, não basta para acabar com isso, porque há uma dimensão mais além disso, ao lado disso, omitida nisso, embutida nisso, que é profundamente ideológica e que não muda automaticamente com a mudança do modo de produção.

V. Madeira – Houve um momento em que você colocou a questão do nosso machismo regional. Será que nisso você não é vítima de um preconceito nosso sobre nós mesmos, nordestinos?

P. Freire – Eu sublinhei que eu acho que o machismo entre nós é de tal maneira arrogante, é de tal maneira contundente, que a gente precisa sublinhá-lo constantemente. Eu me lembro agora, por exemplo, de uma grande página de Engels em que ele diz: Marx e eu tivemos durante muito tempo de enfatizar a prevalência do econômico exatamente por que ele vinha sendo de tal maneira negado, que era preciso sublinhar enfaticamente para que se começasse, afinal de contas, a perceber o seu papel. Mas, diz ele, nunca foi intenção nossa negar o papel da superestrutura. Bem, é meio cabotino até que apele para tal exemplo para explicar a minha posição aqui. De modo nenhum eu queria reduzir o machismo apenas ao Nordeste. O machismo não é nem só brasileiro! Puxa, ele existe no mundo todo! Agora, sublinhei a nós, sublinhei a questão para nós do Nordeste onde essa coisa é terrível. Você imagina, hoje está um pouco melhor, já, mas no meu tempo aqui antes de sair, antes de ter saído do Recife, era comum, por exemplo, que o marido ficasse em casa à noite, ele numa poltrona, com o seu cigarro e olhando a televisão e de repente dissesse “Sílvia, minha filha”, manhosamente, maciamente, “minha filha, vem cá”. E ela vem e ele dizia: “olha, muda o canal”. E ela vai até o canal e muda o canal do dois pro quatro, do quatro pro seis, e ele “tá ótimo, minha filha e fica cá”. Daqui a pouco ela vai embora, fazer qualquer coisa e ele diz, “Silvinha querida” e ela “que é querido?”, e ele então “faz o café”. Faz o café e o cara depois pede um copo de água. Quer dizer, de modo geral, no machismo, o homem não forra a cama em que faz amor com a sua mulher, não lava o banheiro em que toma banho com a sua mulher, não varre a casa que suja ao entrar! Quando tudo isso não é feito por ela, é feito por uma empregada a quem não se paga praticamente nada. Quer dizer, é aí, é nesse sentido que eu dei a impressão de ter privilegiado o Nordeste…

J. Chasin – Em suma, quais foram as experiências fundamentais desse período? Seja a nível do ensinar, do aprender, do “desaprender”, o que ocorreu de decisivo nesses anos?

P. Freire – Eu tive uma porção de coisas assim importantes nesse período, muito importantes. Por exemplo, uma delas, extraordinariamente importante, foi ser encontrado pela Elza e encontrá-la, numa dessas esquinas do mundo, não é? A gente fez agora 40 anos, em novembro do ano passado, e temos 7 netos, deveríamos até ter mais, não é? E temos 5 filhos, deveríamos ter tido 12, a Elza perdeu… também já pensaste, 12 no exílio, deve ser… Nessa época, tive também a oportunidade de encontrar ótimos professores.

J. Chasin – Você se lembra de alguns?

P. Freire – Antes da universidade, apesar de ser perigoso sugerir alguns nomes, porque podes magoar alguém, eu citaria o Prof. Marcílio de língua portuguesa. Um outro cara, que me marcou intensamente, foi Amaro Quintas. Ele era um extraordinário contador de histórias. Mas, além disso, ele era um pesquisador, quer dizer, ele não era apenas um excelente professor de história. Sim, eu me lembro das aulas dele, ele jovem ainda. Até hoje continuo chamando-o de Dr. Amaro, de Prof. Amaro, e ele protesta, mas eu sempre o chamo assim. Mas eu me lembro, sim, como me lembro. As aulas dele eram tão boas que corriam o risco de ficarem ruins. Porque nas aulas de Amaro tu vivias um fenômeno que é meio perigoso: a empatia. Em certo momento, ele conseguia me arrancar da cadeira de aluno e me meter no enredo da história, que ele contava apaixonadamente. Tu poderias dizer: “bom, mas isso não é nada ruim”. E eu digo que o ruim disso está exatamente em que tu podes ficar muito mais apaixonado do que crítico. Se bem que para mim toda postura crítica envolva um pouco de paixão. Bem, Amaro Quintas me impressionava muito. Um outro professor, que me marcou muito também, foi o Prof. José Cardoso, hoje um grande industrial em Sorocaba. Ele pode até divergir muito de mim, mas foi um excelente professor. Um outro professor de que lembro, e que já morreu, é o de matemática: eu sempre passava no “canto do pau”, na “rapa”. Mas em história, com Amaro Quintas, eu sempre tirava boas notas; em português, em francês, em inglês também.

Mas, o que eu gostaria de te dizer, como centro da minha resposta, é que num certo momento da minha vida, um pouco antes do curso pré, no finzinho do 5º ano do ginásio da época, o que mais me tocou foi descobrir, – depois que eu comecei a comer, a comer mais e mais, em função da contribuição dos irmãos mais velhos, que começavam a trabalhar, – que eu não era tão burro quanto eu pensava. Tu nem podes bem imaginar com que emoção, quase chorando, eu comecei a perceber que entendia, que eu podia entender as coisas que estudava. Deu um estouro dentro de mim, eu lia, lia e estudava. E coincidia que eu começava também a dar as minhas aulinhas de língua portuguesa. Eu me lembro, me lembro da amorosidade, da curiosidade com que eu lia, por exemplo, os Serões Gramaticais, o famoso livro de Ernesto Carneiro Ribeiro, as brigas de Ernesto com Rui Barbosa, A Réplica, A Tréplica. Eles brigavam muito por causa da redação do Código Civil Brasileiro. Um negócio! Obviamente, isto tudo para mim, hoje, não tem nenhum sentido…

J. Chasin – E a sensibilidade para o social, nasce também nessa época?

P. Freire – Não. Eu te diria que a sensibilidade para o social vem já da infância. Agora, ela vai tomando forma na medida em que eu vou me experimentando mais socialmente. Uma coisa que nem sempre é bem compreendida, lamentavelmente, é o Serviço Social da Indústria, o chamado SESI, que, ao nascer nos anos 40, revela um dos lúcidos momentos da liderança da classe dominante brasileira. Ele nasce não para desafiar a classe trabalhadora, no sentido dela superar a condição de classe em si e alcançar a de classe para si. Isso, obviamente, não se podia pedir jamais às classes dominantes, de país nenhum do mundo, que organizassem um serviço de caráter social, pedagógico, ou político-ideológico, através do qual se tentasse ajudar as classes trabalhadoras a alcançar consciência de classe. Pelo contrário, ele nasce fundamentalmente para dilatar no tempo, tanto quanto possível, fenômenos que hoje ocorrem independentemente da classe dominante.

J. Chasin – Surge para tentar a assimilação dos trabalhadores à sociedade estabelecida, que transitava para a industrialização.

P. Freire – Isso, nasce para isso. Mas é interessante e eu vou trabalhar lá…

V. Madeira – Foi seu primeiro emprego…

P. Freire – Foi meu primeiro emprego não como professor. Eu começo a trabalhar no Setor de Educação do SESI. O espaço político, social do SESI termina por me radicalizar, ou por começar a me propor a radicalização. Então vocês vejam como as coisas são interessantes. Se você observa, se você tem uma leitura da realidade, em termos mecanicistas, em termos de um mecanicismo zarolho, você não pode jamais entender a própria realidade, que é em si contraditória, rica, processual. E foi exatamente no corpo, na intimidade de uma instituição assistencial, que eu começo a encontrar ou a me reencontrar ou a reencontrar o Paulo menino, que tinha tido as suas primeiras experiências com meninos operários, camponeses etc., em Jaboatão, na minha adolescência. E aí, e aí eu começo a me aproximar da razão de ser do fenômeno da exploração de classe. Então, vocês vejam, uma leitura ingênua, mecanicista, da minha passagem pelo SESI não é capaz de entender isso. O SESI me ensinou pra burro. Eu te diria que as minhas primeiras experiências no SESI, no campo da educação popular, que levei mais de 10 anos sem comunicar, tem muito a ver com a formulação, que estala depois, na formulação desse “negócio”, que é chamado, não muito precisamente bem, de método Paulo Freire. Mas, sei lá, é esse o mérito, das minhas relações como Diretor da Divisão de Educação do SESI…

J. Chasin – Você já fez essa afirmação há muito tempo atrás…

P. Freire – Fiz, fiz…

J. Chasin – Lembro de ter lido essa sua afirmação. De que o “estalo” teria nascido exatamente dessa vivência. O SESI foi o lugar onde se deram as primeiras esfregadelas da cara na realidade?

P. Freire – Isso. Foi. Agora, evidentemente, a formulação foi posterior, já fora do SESI, mas sem o SESI não teria existido…

V. Madeira – Sem a fecundação…

P. Freire – Sem a fecundação do tempo. Mas isso é a história! Eu não sei como não entendem isso. É porque eu acho que tem gente que se especializou só em criticar. Não cria nada, sabe? Então, ao não criar, a não ser a crítica, o cara não entende esse fenômeno da criação que nós fazemos, não individualmente, mas socialmente.

J. Chasin – Durante esse trabalho, suponho que você andou fazendo certas leituras. Quais foram?

P. Freire – Hoje, eu me inclinaria, imediatamente, para leituras que só fiz depois, sobre problemas de ideologia das classes sociais. Dos mecanismos de introjeção da ideologia dominante pelo dominado; a tensão da relação dominado/dominante enquanto relação de classes sociais, e não apenas enquanto indivíduos. Na época, porém, você sabe para onde eu corri? Eu corri para estudos históricos, culturais, em torno da formação brasileira. Mas foi bom também. Claro!

J. Chasin – Deixa eu fazer uma pergunta, Oliveira Vianna entrou?

P. Freire – Mas claro!

J. Chasin – Não referindo, agora, às críticas necessárias a Gilberto, há que distinguir claramente Gilberto Freire de Oliveira Vianna, em especial o Gilberto de Casa Grande, deixando de lado por completo, no momento, o seu luso-tropicalismo posterior.

P. Freire – Não há dúvida, não há dúvida. Eu acho Gilberto Freire uma presença indiscutível, marcante, na história e na cultura desse país! A impressão que eu tenho, pode ser que esteja completamente errado, é que a obra de Gilberto Freire ainda vai ser estudada seriamente a nível universitário nesse país e não necessariamente para se concordar com ele.

J. Chasin – Seria, exatamente, para entender a gênese do “equívoco”, numa perspectiva de determinação social do pensamento?

P. Freire – Claro, tudo isso, mas também a presença dos acertos dele. Para mim, Gilberto está entre nós, e até o fim deste século ele vai ser um pensamento intensamente estudado.

J. Chasin – Vejo que você, ao mencionar Oliveira Vianna e Gilberto Freire, faz recair a ênfase sobre o segundo.

P. Freire – Ah! lógico. Mas, eu também não descarto um estudo sério, constante de Oliveira Vianna.

J. Chasin – Agora, provocadoramente: como é que você dimensiona e lida com o caráter conservador dos dois?

P. Freire – Olha, o que eu faria, e é o que tento fazer, é exatamente, não deixar que a gostosura do estilo de Gilberto mine a minha consciência crítica. Tá me entendendo? Porque se você lê Gilberto Freire, sem brigar com a beleza do seu estilo, você corre o risco de ficar vencido diante dele. Agora, eu me distanciei muito de Gilberto Freire, politicamente também. Depois de 20 anos, falei com ele no ano passado, na praça, ele veraneando e eu também. Achei que devia cumprimentá-lo. Nesse ponto, pode ser que muita gente não concorde comigo. Sou um pouco socrático, sabe, eu fui e apertei a sua mão. Gostei de fazer isso! Não concordo com muita coisa que Gilberto fez, com muita coisa que Gilberto disse, inclusive nos tempos, nos tempos da ditadura, entende, mas isso era outra questão. Mas, o que quero deixar sublinhado é a presença marcante da obra desse homem, sobretudo em Casa Grande e Senzala. Olha, minha gente, não é brincadeira um livro fazer cinquenta anos e permanecer atualizado. Não é brincadeira, e não se faz isso a custa de propaganda. Tem muito livro, por aí, que a gente vê dar um estouro de livraria, de venda, nos primeiros seis meses, e se acaba. Eu acho que é um livro que tem que ser respeitado. Naquela época, eu conhecia bem Gilberto. Eu votei nele em 1945, quando ele foi candidato a deputado e fazia parte da chamada esquerda democrática da UDN, de onde saiu depois o Partido Socialista.

V. Madeira – Caio Prado também.

P. Freire – Exato. Você sabe quem também? O Antônio Cândido. Este é outro intelectual por quem eu tenho um imenso respeito. É uma das melhores expressões da inteligência desse país! E do bom gosto desse país. Mas, não só admiro o intelectual que é ele, mas também o homem que ele é. Nós somos bons amigos. Nós vivemos anos sem nos conhecer pessoalmente. Há 4 anos, estive em São Paulo e nos vimos, finalmente, pela primeira vez. Era como se pudéssemos dizer, um ao outro, “como eu ia te dizendo”, tal a afinidade entre nós. Acho esse homem um intelectual de primeira linha nesse país. Um homem humilde, não por tática, mas por natureza e também por convicção. Quer dizer, um sujeito fantástico.

Mas, sim, voltando ao que falava, eu também li, na época, e registrei, fiz fichas que foram comidas pelos cupins e levadas pelas cheias, que o Recife teve durante o meu tempo de exílio, li todos os visitantes estrangeiros que andaram por aqui escrevendo suas crônicas. Arranquei dessas leituras coisas fantásticas sobre a nossa formação autoritária, apesar destes autores estarem distantes da dimensão das classes sociais como categoria analítica. Tu sabes, todas essas leituras me ajudaram enormemente para ampliar a minha compreensão desse fenômeno, quando eu me tornei um pouco mais íntimo das análises de Marx.

J. Chasin – Estou estranhando uma coisa, você não mencionou ainda, e estou esperando por isso, os autores católicos.

P. Freire – Ah! sim, sim, inclusive não estranhe muito não. Cedo ou tarde eu falaria…

J. Chasin – Mas, nessa época, eles já estavam presentes?

P. Freire – Nessa época eles já estão presentes, já estão presentes… Eu tinha cerca de 25 anos. Aí estou, por exemplo, com Mounier, com Maritain, Bernanos, que na época estava no Rio de Janeiro. Nessa época me deleitei também com Santo Agostinho. Eu tenho todo o direito, aqui, de cometer heresias e equívocos, porque nunca estudei teologia sistemática e nunca fui de Seminário. Mas, tu sabes que minha leitura de Agostinho, na época, me trouxe uma compreensão da presença de Deus na história, que não me imobiliza de fazer história, pelo contrário, é uma presença que deixa a nós, os homens e as mulheres, a tarefa de fazer a história e não de recebê-la?

R. G. Dantas – Exatamente a mesma experiência que eu tive, por coincidência, quando li pela primeira vez Santo Agostinho, confirmada depois quando me aprofundei mais. Um homem que tem teologia da libertação no espírito, da mesma forma que Santo Agostinho, tem de se preocupar muito com a história.

P. Freire – Há 5 anos voltei para o Brasil – e vocês que convivem com livros, podem imaginar o que significou para mim – quando um dia, meu cunhado, irmão da Elza, me disse “Paulo, amanhã o que sobrou da tua biblioteca chega”. Quando eu fui saído do Brasil (na verdade eu nunca saí), se instalou um problema: a minha família e meus amigos do Recife “tiveram o que fazer” com os livros do Paulo! Quatro mil livros, na verdade tão demoníacos e tão inocentes quanto todos os livros sacros, e nenhuma especificidade diabólica, mas para os milicos todas… Pois bem, o que fazer dos livros? Era meio arriscado para qualquer membro da família, pois, quando a violência em São Paulo tá começando, aqui tá no meio. Então, um amigo de meu cunhado, um industrial, que não tinha nada que ver com as minhas posições, disse assim: “José de Melo, eu não quero nem saber que diabo é que esse teu cunhado faz nem pensa, mas esse cara é teu cunhado e os livros dele vêm para aqui”. Levaram todos os meus livros em caixotes para lá, mas vieram as enchentes, que levaram alguns dos caixões e os cupins trabalharam os que restaram. Mas, quando o que restou dos caixotes chegou, no dia seguinte, passei o dia inteirinho e emendei pelo outro tirando a poeira, o mofo, alguns livros perdidos completamente com os cupins. Eu olhava o livro e me lembrava dos meus encontros com ele, eu sabia exatamente até onde eu tinha comprado e quando. Estavam todos encadernados, era tempo em que professor podia ainda encadernar livros… Tu sabes o que eu encontrei lá, intacto, perfeito, sem nenhuma poeira, sem nada? A Cidade de Deus, de Agostinho, cheia das minhas marcas, das minhas anotações. Agora, uma pena, só encontrei o primeiro volume de Casa Grande e Senzala, o outro sumiu. Eu tinha uma edição de Sobrados e Mocambos, que tinha 3 volumes, não sei se vocês se lembram dessa, o segundo volume desapareceu. Hoje, parece que a edição mais nova tem dois volumes. Esses livros estão hoje em São Paulo, comigo. Eu até que não os consulto, mas estão na minha sala, eu fiz uma estante especial para eles. Hoje opero muito mais a biblioteca mais nova, que está no outro canto.

V. Madeira – Dificilmente há, no Ocidente, um pensamento pedagógico sem uma referência à obra de Agostinho. Exemplo disso foi uma colega nossa que, para entender o Emílio, teve que estudar Santo Agostinho. E o que teria, à primeira vista, Rousseau a ver com Agostinho? Mas, no seu caso, eu não conhecia essa sua ponte…

P. Freire – Pois é, é uma coisa de que, realmente, pouco falo. Não porque pretendesse esconder, não, é mais uma questão de pudor intelectual. É que o fato de ter lido, quando jovem, Agostinho, o fato de ter até me apaixonado pelo que ele dizia, não me parece ser suficiente, de maneira nenhuma, para que eu venha a dar a impressão aos leitores de que seria um agostiniano, um homem muito marcado por Agostinho. Não, não. Isso ocorreu também com outros autores por quem eu passei.

Tem muita gente que se espanta, do mesmo modo, quando eu refiro certas dimensões da minha posição com relação à fé, por exemplo, com relação a Deus. A nível mundial, inclusive, como em uma entrevista coletiva, fora do Brasil, alguns jornalistas me falavam um pouco estranhos, depois de me terem ouvido num debate no dia anterior, de como, tendo a leitura da realidade que eu tenho, estar trabalhando com o Conselho Mundial das Igrejas. Eu de modo geral dizia: “Olha, em primeiro lugar, tenho a impressão que vocês têm um preconceito”. Oh! Coisa trágica são os preconceitos! “Vocês têm um baita preconceito contra o Conselho Mundial de Igrejas, porque pra vocês, Igreja necessariamente é ruim!” O Conselho Mundial de Igrejas teve um papel muito importante no momento em que a África começou a rebelar-se. Tu conheces a África?

J. Chasin – Um pedacinho.

P. Freire – O Conselho Mundial das Igrejas teve um papel importante no momento em que a África começou a levantar-se, a emergir, ingenuamente ou não, em função do seu tempo mesmo, a brigar para ser, para tentar ser. O Conselho Mundial das Igrejas se engajou nos processos de luta de libertação da África toda.

J. Chasin – Em que época você localiza isso?

P. Freire – Foi muito antes de eu estar lá. E eu tenho a impressão que, o fato de me terem aceito no Conselho, deveu-se a que já tinham o trato da experiência da libertação. Quer dizer, quando eles tomaram conhecimento do meu trabalho no Brasil e na América Latina, eles já tinham a prática da “Pedagogia do Oprimido”, que deve ter se iniciado na década de 60 com os movimentos de libertação. O Conselho Mundial sempre procurou manter relações extraordinariamente boas com o PAIGC de Amílcar Cabral, com o MPLA de Angola, com a FRELIMO de Moçambique e com outros, das outras Áfricas. Houve momento em que a direita das Igrejas tentou frear tudo isso. Por exemplo, houve uma crise muito grande, no momento em que o Conselho Mundial de Igrejas declarou que não depositava mais dinheiro nenhum em banco que ajudasse a África do Sul. Aos jornalistas eu falava nisso tudo, explicando, e dizia que o que se deve observar exatamente é se a minha fé atrapalha a libertação das classes dominadas. O que é preciso saber é se tenho ou não tenho direito de ter, dizia aos jornalistas, a ingenuidade de pensar que sou mais do que o meu cadáver? Isso é um direito ou não é? É. Agora, no momento em que eu começar a usar a crença, de que eu sou mais do que o meu cadáver, para alienar as classes trabalhadoras, então briga comigo. Mas se não, se pelo contrário, se essa crença me empurra mais ainda para a briga, então viva a minha ingenuidade! Entende? Quer dizer, eu acho que é preciso ser tolerante.

J. Chasin – Compreendo. Sei que na Guiné-Bissau você tem todo um trabalho. Em Angola, não sei em que ponto chegou…

P. Freire – Foi um trabalho menor. Mas acho que foi bom, foi importante.

J. Chasin – Sei. E quanto às reações? Em Moçambique, sei que foi muito forte…

P. Freire – Foi muito forte, em certas áreas.

J. Chasin – A FRELIMO, em certa medida, sentiu-se compelida a isso. Não se trata de endossar a orientação, mas de notar que se liga a um problema todo intrincado que, de toda maneira, havia desencadeado um processo de luta contra as Igrejas. Não só contra a Igreja Católica, mas também contra o missionarismo protestante, a religião muçulmana e a própria religiosidade “tradicional”, ou seja, tribal.

P. Freire – Exato.

J. Chasin – Você tem mais elementos a respeito? Como você compreende esta reação?

P. Freire – Olha, não tenho muitos dados. Mas eu acho, apesar de reconhecer historicamente as razões, inclusive ideológicas, que levaram algumas lideranças da FRELIMO a essas posições, por exemplo, a forma comportamental de muitos dos chamados grupos missionários, que mediatizavam indiscutivelmente o colonialismo, que esse procedimento é negativo. E essa minha resposta não é porque sou homem que tem compromisso de fé, que eu não nego de jeito nenhum, e não anuncio isso para arranjar defesa em meu radicalismo social, político, ideológico, de jeito nenhum! Mas também não digo isso para ser agradável a ninguém, não me interessa. Eu sou, nesse caso, a verdade para mim mesmo, quer dizer, essa é a minha convicção. Portanto, não é nessa dimensão que me oponho. Eu me oponho a essa posição, como a da FRELIMO, cientificamente. Entende, quer dizer, não religiosamente. Eu acho, que entrar na faixa de combate à religião, em culturas por “ene” razões profundamente religiosas, em que inclusive a religiosidade popular tem uma importância extraordinária na história, estreito demais…

J. Chasin – No mínimo é taticamente equivocado.

P. Freire – Taticamente equivocado não tem nem dúvida, mas eu acho que é incompetência, sabe, é incompetência científica. Mao Tsetung diz, num dos seus textos, que a tarefa do revolucionário não é jamais tirar, de dentro da cabeça das massas, a ideia de Deus e meter nela a ideia de Marx, mas é fazer a revolução. Eu acho também que a leitura de Marx, com relação à célebre frase “a religião é o ópio do povo”, demanda uma dimensão histórica, essa afirmação não é metafísica…

V. Madeira – Nem é de Marx, é de um pastor do século XVI.

P. Freire – Taí, eu te confesso que não sabia. Pois é, pra você vê! Essa afirmação não pode ser entendida metafisicamente. O que quero dizer com isso? Quero dizer que não é possível usar o verbo ser, aí, como se o predicativo do verbo ser, que é o ópio, se constituísse na natureza do substantivo, da natureza imutável. Isso seria metafísica imobilizadora, seria uma descrição metafisicamente imobilizadora do objeto ou do sujeito. A afirmação correta seria a religião está sendo o ópio do povo. E é assim que eu entendo Marx! É assim que eu leio Marx, porque é um pensamento impossível de ser enquadrado em gaiolas. De jeito nenhum, ele é rebelde demais, é dialético demais, é contraditório demais pra imobilizar-se. Quer dizer, um pensamento como esse não podia fazer definições metafísicas, entende?

Então você olha o fenômeno religioso hoje, no mundo todo, e ele está sendo o contrário do ópio. Entende? Agora, pode cair de novo no ópio. Aí eu digo que o problema é outro, o problema é outro. Você veja, não vou fazer aqui defesa nenhuma desse negócio do Ayatollah Khomeini, mas eu me lembro que eu estava na Europa, em Genebra, quando o representante dele deu uma entrevista na televisão francesa, dizendo: “o Ayatollah vai voltar no dia tanto, desce e toma o poder”. Eu disse, meus filhos, vocês estão assistindo a um momento diferente na história: esse cara vai tomar o poder. Foi e tomou o poder. A televisão filmou a juventude em Teerã, na rua, e perguntava: “por que é que você está aqui brigando?” Eles diziam: “porque desrespeitaram a nossa tradição religiosa”. E ninguém falou em outras causas da briga. Isso me fez uma baita transformação naquele tempo. Não te digo que foi pior ou melhor pra nada, estou objetivamente encarando isso.

Você não pode negar, por exemplo, a presença dos chamados cristãos, na Revolução da Nicarágua. Ela é tão grande que incomoda a ala conservadora e reacionária da Igreja mundial. Eu conheço a Nicarágua e dei uma contribuição mínima, mas dei, lá, no passado. A revolução foi uma coisa muito séria, muito profunda. Eu vi depoimentos de cristãos que lutaram, que brigaram, depoimentos extraordinários. Entende? Por exemplo, me lembro de um, dentro de uma igreja, em que o moço dizia: “aprendi com os padres desta igreja a Teologia da Libertação, ela me clareou a visão da história e me engajou profundamente na luta pelo meu povo. Lutei pelo temor também, quase fui morto nas cadeias, nas masmorras do Somoza, e voltei”. Vocês vejam que depoimento maravilhoso esse jovem deu! Porque, vê bem, ele poderia naquela altura, por exemplo, ter dito: “a Teologia da Libertação me ajudou a ler, a reler a minha história, a melhor participar dela, mas ao fazê-lo perdi a fé, e vim aqui hoje agradecer a ela a tarefa que cumpriu”. E eu acho que teria sido um depoimento extraordinário. Mas ele disse, a Teologia ilumina a minha presença na história, me leva à luta pelo meu povo, eu povo também: quer dizer, saí hoje das forças armadas, mas dentro da revolução, e vim hoje a esta igreja para dar o meu depoimento de que agora deixo a arma, que eu apanho de quando em vez, para voltar. “Seu” moço, esse depoimento eu ouvi lá, dois meses depois da revolução, dentro de uma igreja. E isso não se dá só ao nível desse moço, mas ao nível do Cardenal, do Ernesto Fernandes e assim por diante.

V. Madeira – Eles estão tendo uma posição de fé tão profunda que desobedecem o papa para obedecer a Deus.

P. Freire – Exato! Quer dizer, como, tendo em vista tudo isso, como é que se pode ler, “religião é o ópio do povo”, metafisicamente?

J. Chasin – Não quero estabelecer, aqui, uma “polêmica exegética” sobre esta passagem mas, pensando nos leitores, gostaria de te colocar diante do que entendo ser a forma precisa de sua interpretação. E me sinto fortalecido para fazê-lo, na medida em que, na dialogação com os cristãos da Teologia da Libertação, que venho me esforçando por travar, coincidentemente, ao fazer uma exposição, há meses, eu tocava neste ponto com Manfredo Araújo de Oliveira, que é sacerdote e filósofo da Universidade Federal do Ceará, que considera a Teologia da Libertação, digamos, pouco radical (no sentido preciso do termo) do ponto de vista teórico e que, portanto, necessita ir bem mais adiante. O entendimento, que então explicitei, da frase de Marx, recebeu dele acentuada concordância, e é o mesmo que coloco, sumariamente, a você.

A frase se encontra ao final de um dos primeiros parágrafos da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. É texto da passagem de 1843 para 1844, dos primeiros de Marx e publicado nos Anais Franco-Alemães. A frase é fortemente determinada pelo seu contexto, de modo que repele a interpretação banal de que a religião é “ópio do povo” no sentido vulgar de mero instrumento dos poderosos para a estupidificação das massas. De que seja uma pura e simples forma mediadora do entorpecimento espiritual, da consciência, da inteligência do povo, extrínseca a ele e às suas condições de existência. Diversamente, as determinações de Marx correm por dois ramos complementares, que mostram a religião como expressão e protesto contra a miséria real. Ou seja, no mundo degradado pela espoliação, a religião se põe como expressão espiritual de um mundo sem espírito. A crítica abre, portanto, para a busca de um espírito, de uma consciência que, em Marx não tem, nem poderia ter, sentido religioso. Nestes termos, o que seria, então, a religião? A forma ilusória, alienada (não podemos ser taticistas no debate) de uma espiritualidade real que o mundo, nas condições dadas, torna impossível, não comporta. Tudo isso, ao rejeitar a religião, não exclui ou desconhece, todavia, a dimensão de protesto de que ela também é constituída. É por aí, parece-me, que se dá, e a Teologia da Libertação o expressa bem, o encontro, hoje, entre o sentimento religioso e a vontade de transformação do mundo. Se dá hoje, como se deu, por exemplo, nas origens do cristianismo, mas é claro que sob fórmula distinta, ao menos na instrumentação conceitual. Que já é um outro e sério problema, cuja abordagem é urgente. É preciso assumir com serenidade todos esses encontros e todos esses afastamentos, pois é impossível ocultar, e isto jamais seria proveitoso, a diferença decisiva, por exemplo, no campo ontológico, entre a concepção de Marx e a concepção cristã. Ressaltando, com toda ênfase, que muitos temos e podemos fazer juntos, o que, em verdade, nem sequer foi principiado.

P. Freire – Exato, eu acho também.

R. G. Dantas – Gostaria de fazer uma complementação. Acho que resta também um campo aberto. Seria o caso de uma indagação, de uma investigação no sentido de apurar mais por dentro e mais radicalmente a própria ontologia subjacente ao marxismo, e saber se, por exemplo, a partir de sua análise mais profunda, digamos assim, da ontologia dialética, estaria excluída a dimensão transcendente. Evidentemente que, aqui, não vamos aprofundar isso, mas a posição e o veio, no qual me coloco atualmente, é que se exploramos, do ponto de vista ontológico, a dialética, chegaremos à necessidade de postular, não somente a posse de transcendência, mas a sua efetiva existência. Agora, este é um campo, veja-se bem, esse é um campo a ser investigado. E como dizia o Paulo, a obra de Marx é uma obra que a gente tem que situar historicamente. Foi um autor que não pretendeu, de maneira nenhuma, exaurir todas as questões, e daí sua densidade, daí a sua riqueza, daí a sua fertilidade. E nesse sentido elogio Marx.

P. Freire – Isso, não há dúvida. Sabes, me dói quando percebo certas tentativas de imobilização de Marx, também quando eu percebo certas decretações da sua morte. Não, não, pra mim o marxismo se refaz, sem se contradizer historicamente.

V. Madeira – Nesta noite, estamos diante do Paulo, como quem conhecesse uma árvore e estivesse estudando as suas raízes. E eu me sinto, face a ele, como quem já viu muitos galhos, e hoje estivesse procurando as raízes, a gênese. Paulo voltou a falar de uma coisa que tem sido um confronto frequente na vida dele, como, por exemplo, as perguntas dos jornalistas que formularam a questão de ele pertencer ao grupo do Conselho Mundial de Igrejas. Isso está a um nível superficial. A resposta do Paulo na ocasião e a colocação do Paulo aqui estão mais ao nível das raízes. Quando eu perguntava sobre a família, inclusive sobre as influências da família até nas inclinações vocacionais, digamos assim, é exatamente porque queria situar essas raízes. Nas vezes que eu me honro de ter trazido o Paulo para um trabalho junto ao Mestrado em Educação, eu ouvi seu testemunho sobre a fé em Jesus Cristo. O que é mais chocante, para o ateísmo do nosso século, não é que alguém trabalhe para o Conselho Mundial de Igrejas, é que alguém tenha a coragem – esse direito que o estreitismo da visão pseudomarxista nega – de dizer o que o Paulo disse naquele dia: “Não tenho sequer a coragem de me dizer cristão, eu só confesso a vocês que eu gostaria de ser”.

P. Freire – Eu procuro ser, mas não tenho coragem de dizer a vocês que sou.

V. Madeira – Hoje, nessa recolocação do problema em termos mais globais, evidentemente, não vamos exaurir essa discussão. Mas a frase citada por Marx, localizada por Chasin, naquele texto, era uma frase corrente na Alemanha de Marx, e antecedeu a Marx em três séculos, e foi pronunciada no culto por um pastor protestante. Esse discurso existe, Oscar Miller, que foi nosso professor em Roma, mostrou-me uma vez. Era o contexto de uma crítica ao catolicismo daquela época. Os alemães aprenderam essa frase e acabaram por decorá-la! Ela tornou-se adágio popular e Marx a repetiu, assim como no evangelho se encontram tantos adágios estereotipados, que foram da tradição oral e que Cristo teria repetido. Nesse contexto seria difícil, inclusive, saber o que significaria realmente essa categoria religião, no pensamento de Marx. Ou o que significaria naquele contexto histórico concreto em que se elaborava o seu pensamento. O que significaria para aquele pastor essa categoria religião? Certamente, não é a mesma coisa para Marx e para um adágio que é repetido, não tem a mesma conotação. E nós aqui chegamos a um outro nível de análise, que é o nível da análise ontológica, a uma proposta de interpretação dialética, para sermos fiéis à proposta de Marx, à sua metodologia. Não é?

P. Freire – O que eu acho errado é a existência entre nós, no Brasil, na vida política, cultural, acadêmica de um tipo de comportamento intolerante que tem muito a ver com a experiência autoritária. Vejam como o autoritarismo é intolerante, preconceituoso. Para mim a virtude da tolerância é uma coisa difícil de ser apreendida e não é só teologal, e eu nem sei se posso dizer assim, mas ela é revolucionária! Ela nada mais é que conviver com o diferente pra brigar com o antagônico. Mas aqui, no Brasil, a gente se acaba entre os diferentes e deixa o antagônico em paz! Então, por exemplo, por que é que um companheiro meu ou companheira minha, marxista-leninista – não importa que diabo de ista é! – que tenha um compromisso que eu respeito, compromisso profundo de participar de uma reinvenção, da reinvenção dessa sociedade no sentido profundo, por que negar a mim o direito de participar, de ser autor também da reinvenção?

J. Chasin – Certo, está bem claro. Valeria a pena, agora, relacionar tudo isso – a participação, a condição de autor –, concretamente com o golpe de 64 e os nossos dias.

P. Freire – Pois é, no pré-64 há um despertar. Não tenho dúvida, inclusive, de que foi exatamente o crescimento, o desenvolvimento, o incremento, da presença popular, que virou ameaça para as classes dominantes, foi esta presença emergente um dos fatores fundamentais para o golpe de estado. É por isso, no meu entender, que o golpe de estado, a partir de 64, muda completamente de feição, no Brasil e no continente. Ele inaugura um modelo diferente em toda América Latina. Até então a gente tinha dois ou três generais fortes…

R. G. Dantas – Caudilhos.

P. Freire – Caudilhos, que transformavam seus países, maiores ou menores, em fazendas pró-gado, dos quais, talvez, o último seja o Paraguai. De 64 em diante o golpe passou a virar símbolo de ideologia, símbolo de projeto. Pode ser que esteja equivocado em minha leitura, mas foi uma tentativa de viabilizar, tão rapidamente quanto possível, a modernização capitalista, que estava sendo sacrificada, segundo as análises das classes dominantes, sobretudo das “matrizes”, pelo afrouxamento das democracias latino-americanas. Era preciso, então, um certo rigor, uma certa mão forte para modernizar. Então esse golpe inaugura a clareza ideológica dos golpes.

Veja a chamada ambiguidade do regime populista; de um lado o populismo, a situação populista, atrai as massas e atende em parte as suas demandas, e, do outro, pretende manipulá-las para abandoná-las a certa altura do nível de desenvolvimento da sua presença. Mas essa experiência é contraditória. A presença das massas nas ruas, nas praças é imprescindível, porque sem isso não há populismo, mas a própria presença delas e sua experiência de demandar, de protestar acaba por educá-las. Quer dizer, a prática de vir às praças demandar, ensina a demandar. E isso cria o grande impasse do populismo. É por isso que, toda experiência de liderança populista, chega a um momento de ruptura: ou a liderança populista se orienta, se inclina no sentido das massas e aí então se dá o golpe de direita, ou essa liderança desaparece. Ora, isso ocorreu com Perón, com Vargas e com Goulart.

Agora, veja, eu acho que, no caso de Recife, no caso do Nordeste, no caso de Miguel Arraes, embora eu não conhecesse todos os seus auxiliares, o espírito do trabalho, da proposta de governo se orientava no sentido de viver, de compreender e de estimular a presença das massas. Então, por exemplo, quando Miguel Arraes, prefeito recém-eleito, convoca um grupo de intelectuais, um grupo de artistas, um grupo de operários e nos diz que gostaria de fazer um trabalho ligado às massas populares do Recife, mas que a prefeitura não tinha emprego pra dar a ninguém, não tinha condições para isso, eu pude dizer: “Arraes, um trabalho assim, dentro das nossas condições de vida, será possível porque a gente tinha escolhido, há muito tempo, uma militância assim”. Então, é aí que nasce o MCP. Germano Coelho entrou e assumiu uma liderança inegável do ponto de vista da formulação dos objetivos do MCP, quer dizer, Germano Coelho foi uma grande presença demarcadora do MCP. E é dentro desse espírito, espírito também histórico, desse caldo histórico que eu apareço como uma expressão dele. Quer dizer, eu não inventei, na minha cabeça, idealisticamente, um momento da história brasileira pra fazer a proposta pedagógica desse momento, eu fiz uma proposta político-pedagógica em função dele, disto que estava lá…

V. Madeira – Você foi produzido por isto.

P. Freire – Eu fui produzido…

J. Chasin – Dentro deste contexto, então, a tua proposta não poderia ser identificada a uma utopia pedagógica?

P. Freire – Eu me identifico como utópico, sabe? Agora, num sentido diferente do que, geralmente, é definido. Pra mim, utópico não é o que é impossível. A postura utópica é a postura que vive, entende, e se experimenta na tensão entre a denúncia e o anúncio.

J. Chasin – É o “sonho com o pé no chão” do Lênin?

P. Freire – Exato, é isso. Vê bem, esse trecho do Lênin é absolutamente fundamental. Eu te diria, agora, procurando um outro testemunho em Amílcar Cabral: não há revolução (uso agora a palavra com todo o peso dela) sem sonho. A questão que se coloca é saber se, quem sonha, está sonhando um possível histórico. Segundo, se, quem sonha, está lutando para possibilitar o que está sendo impossível hoje. Fora disso a revolução burocratizaria as mentes e não seria a revolução.

J. Chasin – Por isso é que você prefere reinventar o mundo e não…

P. Freire – Por isso!

J. Chasin – … e não transformar o mundo?

P. Freire – Isso! Porque pra mim a reinvenção é algo mais. Olha, quando falo na reinvenção do mundo, estou falando da reinvenção da sociedade A, B e C. Estou implicando a reinvenção da sociedade, a reinvenção, primeiro e sobretudo, do ato de produção. Segundo e até simultaneamente com isso, estou falando na reinvenção do poder. Para mim, a questão que se coloca ao revolucionário, neste fim de século e de milênio, não é mais a tomada do poder, mas é a tomada do poder que se consubstancia na reinvenção do poder tomado.

J. Chasin – Mas, apenas “reinventar” o poder não é estar renunciando ao grande propósito emancipador de liquidar com todas as formas do poder?

P. Freire – Ah! mas mesmo que você aceite que, um dia, todas as formas de poder desapareçam, me parece que é utopia também, inclusive no bom sentido…

J. Chasin – Veja, não estou aludindo à tese anarquista.

P. Freire – Exato.

J. Chasin – Abstraído todo e qualquer detalhamento, estou referindo a eliminação do poder político enquanto poder dos homens sobre os homens e não sobre as coisas.

P. Freire – É exatamente nessa linha que eu falo na reinvenção. Só se pode marchar para esse tipo de poder no momento em que for feito qualquer coisa nas condições materiais. Essa reinvenção não se dá na cabeça da gente… Daí a necessidade de reinventar a produção. O substantivo que se impõe a essa reinvenção é a participação real, participação das massas populares na delimitação, inclusive, do que produzir, do para que produzir e em favor de quem produzir. No momento em que, porém, a produção, a solução ou delimitação dela, esteja submetida aos técnicos apenas, e que proprietários do saber técnico e científico rechaçam, descasam, ou se divorciam da sabedoria popular (que se gesta na prática social do povo e não na cabeça só do povo e que, portanto, a sabedoria popular não pode ser simplesmente superada pelo saber científico, exato, rigoroso), não se reinventa o ato produtivo. E o povo tem dois direitos, entre outros fundamentais: primeiro, saber melhor o que já sabe; segundo, participar da produção de saber que não tem. E isso não se faz sem a reinvenção do ato produtivo.

J. Chasin – Portanto, a reinvenção, tal como você a determinou nesse momento, não leva o saber popular a dispensar o saber científico…

P. Freire – De jeito nenhum, de jeito nenhum! Agora, o que essa reinvenção implica é que a rigorosidade científica não pode estar alheia à sabedoria popular, como se ela fosse uma pura ingenuidade. O que a rigorosidade científica precisa saber é, em primeiro lugar, que ela não é uma categoria metafísica, que é uma categoria histórica. O que a rigorosidade precisa saber é que a ciência tem uma historicidade, o conhecimento científico tem uma historicidade. A ciência jamais poderia ter sido uma a priori da história. Ela se gesta, ela é a posteriori. Em segundo lugar, por ser o rigor algo de que precisa o saber revolucionário, é que ninguém, ninguém chega lá partindo de lá. Eu inclusive só reconheço a existência de um porque há a existência de um aqui. E não há como chegar lá, a não ser partindo do aqui. O que, às vezes, nós os intelectuais rigorosos, esquecemos é que o nosso aqui quase sempre é um do povo. E a gente tem que partir é do aqui dele! Então, quando tu me colocas a questão de se a sabedoria popular prescindiria da rigorosidade a que nós, uns mais do que outros…

J. Chasin – … estamos obrigados.

P. Freire – Estamos obrigados, a minha resposta é de jeito nenhum. Mas, eu simplesmente penso que não é possível arrancá-la para um nível de rigorosidade, esquecendo o que é. Esse é o ponto de partida. E agora eu volto a Mao Tsetung. Mao Tsetung, na sua epistemologia, colocava um negócio muito simples e dizia: o que nós temos que fazer com as massas populares, com e não para elas, e jamais sobre elas, o que nós temos que fazer (agora estou ampliando um pouco o que ele dizia), é desafiá-las a que ultrapassem o saber que alcançam através da sua própria prática, o saber que as deixa ao nível da sensibilidade do fato e do objeto, para que alcancem a razão de ser do fato e do objeto. A razão de ser se vai dando historicamente. A gente tem diferentes razões de ser, dos fatos e dos objetos. Por exemplo, o que se conhecia de Marte, até 8 anos atrás, não é necessariamente o que se conhece hoje. Quer dizer, isto é a historicidade da ciência. Agora, pretender, de um lado, desconhecer a ingenuidade como se a ciência nunca tivesse sido ingênua, não é possível. É estabelecer a ruptura entre ingenuidade e criticidade.

J. Chasin – Em suma, sem as energias naturais e espontâneas das massas e de sua consciência, articuladas convergentemente com o saber objetivo, historicamente determinado, não se transforma o mundo.

P. Freire – Eu acho que não. Eu acho que não, viu? Agora, vê bem, gostei enormemente quando tu falastes aí, em, em conjugadas, e quando tu falastes também em espontâneas, e não falastes em espontaneísmo.

J. Chasin – Claro. Deliberadamente.

P. Freire – Isso aí é o que é o correto. Por exemplo, negar a importância, na história, do espontâneo é absurdo, é uma incompetência científica. Agora, trabalhar espontaneisticamente é desservir…

V. Madeira – Paulo, eu só queria fazer uma colocação de nordestino. Enquanto você estava em plena atividade, eu estava cursando filosofia, de 59 a 62. E você pode imaginar a empolgação daquela geração… E você fez um resgate, hoje nessa entrevista, que me parece muito importante. Você recuperou e revalorizou o caldo de cultura que o produziu e ao seu próprio trabalho. Isto é, nós temos visto comentários sobre Paulo Freire fora do contexto, como se Paulo existisse sem…

P. Freire – Como se eu fosse um a priori.

V. Madeira – É, sem Germano…

P. Freire – Sem Germano.

V. Madeira – Sem Arraes.

P. Freire – Sem Arraes.

J. Chasin – Sem Brasil.

P. Freire – Sem Brasil.

V. Madeira – Sem Brasil, mas sobretudo sem…

J. Chasin – Sem Nordeste.

P. Freire – Isso!

V. Madeira – Essa questão eu tenho colocado nas minhas aulas com a liberdade de quem, de quem conhece o seu pensamento sobre isso. E há outra coisa, vive-se repetindo e eu não conheço, fala-se de um método de Paulo Freire, que eu nunca vi!

J. Chasin – Essa é muito boa!

P. Freire – É ótima.

V. Madeira – Você já viu esse método de Paulo Freire?

P. Freire – Não, não. Eu concordo contigo inteiramente.

V. Madeira – Não é? Quer dizer, eu sinto uma proposta metodológica com três eixos fundamentais, um epistemológico, um axiológico e um teleológico…

P. Freire – Exato.

V. Madeira – … na sua obra como um todo. Nem método de alfabetização eu nunca vi você propor, não é? Ou estou errado?

P. Freire – Não, eu estou achando a sua análise corretíssima.

V. Madeira – Essa proposta, me parece, Toronto percebeu.

P. Freire – Em parte apenas.

V. Madeira – E desenvolveram, sobretudo, a epistemologia. Não sei se eles continuam…

P. Freire – É, eu tenho estado um pouco distante, mas acho que sim, acho que sim…

V. Madeira – Nós aqui do Brasil precisávamos ser mais advertidos sobre isso. Porque, quando você estava no exterior, até o MOBRAL queria dizer que estava fazendo alfabetização pelo método de Paulo Freire. E hoje você se torna explorável comercialmente, porque certas editoras ou certos pedagogos… De repente aparece Paulo Freire aplicado a isso, Paulo Freire aplicado àquilo, Paulo Freire aplicado a não sei o que mais. Tem Paulo Freire aplicado à alfabetização de prostitutas e assim por diante. Quando, na realidade, me parece que está havendo uma confusão conceitual, entre método e procedimentos didáticos e técnicos de ensinar determinadas coisas, que não se ocupam das grandes linhas de orientação de uma ação…

P. Freire – Isso.

V. Madeira – Por isso você nos surpreendeu aqui uma vez, com uma dificuldade na favela Beira Rio, onde os professores do Centro de Educação da UFPB queriam fazer uma alfabetização pelo método Paulo Freire, e o que o pessoal da favela queria, realmente, era a cartilhazinha! E você desbancou todo mundo, quando disse: “mas porque vocês não pegam a cartilha que o povo está querendo?” Por quê? Certamente porque você não tem um método pra propor, você não vem com uma cartilha pra substituir a outra cartilha.

P. Freire – Exato, exato.

V. Madeira – E aquele grupo, que estava indo para a Beira Rio, estava querendo levar uma cartilha Paulo Freire.

P. Freire – É, você tem razão. Tenho a impressão que, cada vez mais, se generaliza a compreensão da minha busca de uma compreensão crítica da prática pedagógica, em lugar de se insistir no chamado método Paulo Freire. Isso me deu um trabalho enorme porque eu precisei lutar muito, inclusive lutar contra uma coisa que sempre me pareceu difícil e até dramático, que é a minha mistificação. Uma coisa que me infernava, por exemplo, era eu me descobrir objeto, objeto de curiosidade, mas eu lutei sempre e aprendi, inclusive, a viver essas situações mitificadoras. Agora eu começo a observar nos Estados Unidos, na Europa, uma compreensão cada vez melhor. Por exemplo, eu tenho sido convidado, não apenas por universidades fora do Brasil, mas também por grupos que trabalham nas áreas populares. Eu fui procurado, em 83, pela Universidade de Stanford, que realizou um curso muito interessante sobre Paulo Freire; não sobre o método de Paulo Freire, mas sobre o pensamento e a prática de Paulo Freire. Eles deram o curso de junho a 14 de julho, e me convidaram pra eu dar o curso de 15 de julho até o final do mês com eles. O curso foi uma beleza, porque coube a mim discutir, com eles, o que eles haviam discutido sem a minha presença, entende? Quer dizer, foi um negócio muito desafiador e eles foram muito rigorosos na seleção dos alunos, exigindo que os caras escrevessem um texto com cerca de 60 páginas, só justificando porque iam a esse curso, e fazendo a análise crítica de pelo menos 3 livros meus. Foram muitos, são muitos acadêmicos. Neste curso, tive oportunidade de discutir, a nível de uma interpretação epistemológica, o meu trabalho, bem na linha do que você colocou agora.

J. Chasin – Qual é a linha epistemológica que você entende que esteja presente em seu trabalho?

P. Freire – A educação não existe sem uma epistemologia, seria uma imensa ingenuidade pensa o contrário. A epistemologia corta tudo. Por isso mesmo é que pra mim, por exemplo, quando eu afirmo que a educação é uma certa teoria do conhecimento, posta em prática, está aí já a advertência para a natureza epistemológica da educação. Agora, qual é essa epistemologia? Pra mim é a dialética, é concreta, mas está também condicionada por uma perspectiva política, histórica. E aí eu me situo em termos da substantividade democrática, quando eu discuto a natureza epistemológica da educação, quando me pergunto sobre o papel dos sujeitos cognoscentes da educação que são os educadores-educandos.

Mas, veja, tem um outro lado na experiência do curso. Quando estava lá fui procurado, então, por um pessoal que representava 10 a 12 grupos que trabalham em áreas populares na Califórnia. E me disseram o seguinte: “Paulo, nós soubemos que você estava aqui em Stanford e procuramos você para saber se você tem ou não interesse de um dia vir a esse país, mas não apenas para a Universidade, mas para trabalhar conosco também”. Vejam bem, eles consideravam o trabalho universitário necessário, eles não eram basistas, não, eles não tinham a ingenuidade de reduzir tudo às bases e de idealizar as massas e a prática. Eu disse a eles que estaria vindo dos Estados Unidos no ano seguinte, e que a universidade iria me pagar pelo meu trabalho, e então eles não precisariam me pagar nada, era só a hospedagem e eu daria 15 dias da minha estada nos Estados Unidos a esses grupos. Olha, foi uma beleza! Os caras se organizaram, terminaram me pagando um pouco, e faziam coisas lindas. Um dia, num dos debates com eles, eu disse: olha, puxa, estou gastando uma fortuna de telefonemas, porque eu chamo Elza três vezes por semana…

V. Madeira – Paixão grande mesmo!

P. Freire – Resultado, no fim de um encontro, quando tivemos 4 horas de debates, às 5 da tarde, um deles me deu um envelope e eu disse: Oh! Muito obrigado! Pensei que tinha me dado uma carta. Quando cheguei em casa, que eu abro, tinha 25 dólares e um bilhetinho! “meu caro Paulo, é para ajudar você a conversar com Elza”. Mas é bonito isso, poxa, quer dizer, eu acho que a revolução, por exemplo, que menospreze um bilhete como esse não é revolução.

J. Chasin – Eu estava aguardando uma última questão sobre Elza pra fechar a entrevista, mas já que você criou o clima… Então, lá vai uma pergunta, no sentido mais generoso: Elza é a síntese da infância e da revolução?

P. Freire – Poxa, tá excelente! Pois é, olha, eu não sei, eu não sei. Se eu disse que é, eu talvez crie um problema com a minha mulher, com o pudor dela, mas pra mim ela é.

J. Chasin – Paulo, você não pode deixar de falar um pouco sobre o ISEB e o exílio.

P. Freire – Rapidamente eu diria, a vocês e aos leitores, que eu não tenho porque ficar triste pelo fato de ter vivido também uma influência isebiana. Eu acho que muita gente, que escreve sobre o ISEB, não chegou – inclusive pelo fato de não ter vivido a circunstância histórica – , a experimentar os ângulos diferentes em que o ISEB esteve na frente. Engraçado, eu tive dois ou três encontros pessoais muito interessantes, antes do golpe, com Álvaro Vieira Pinto, que é um homem que eu, quase sempre, considero injustiçado, um homem que hoje vive escondido no seu apartamento. Possivelmente, dos jovens intelectuais brasileiros de posição marxista, que eu conheço, não quero cometer injustiça com outros, eu conheço só um que vai muito, ou ia muito, ao Rio de Janeiro, visitá-lo constantemente. É o professor Saviano. Tenho um profundo respeito pelo Álvaro Vieira Pinto. No exílio, no Chile, é que a gente aprofundou intensamente uma amizade enorme. O Álvaro é um grande intelectual, mas é um homem tímido. Acho que ele ficou muito ressentido com o que houve com ele depois do golpe. O Álvaro, engraçado, é o homem, possivelmente, que mais falou, do ponto de vista teórico, da consciência crítica, mas é profundamente ingênuo… Eu o visitei em 79, quando passei pelo Brasil, e ele me mostrou aproximadamente 8 livros concluídos, parados na biblioteca dele, 8 manuscritos. Tem um, por exemplo, que é toda uma crítica da sociologia burguesa. Tudo isso está absolutamente imobilizado no apartamento do Álvaro. Eu não sei inclusive, se ele não vai ficar triste comigo por ter eu agora declarado isso… Mas, eu nunca me esqueço, por exemplo, quando Álvaro me escrevia para o Chile, da Iugoslávia, me falando das dificuldades que ele tinha, de como ele gostaria de trabalhar para o povo de lá. Então ocorreu um episódio, que eu conto pra vocês aqui, correndo o risco de magoar a sua modéstia. O governo iugoslavo recebia os exilados brasileiros e garantia a sua sobrevivência. Álvaro, então, escreveu em alemão ao Ministro da Educação, onde ele dizia que se sentia mal por não retribuir o apoio dado pelo governo, e queria dar uma contribuição oferecendo, então, três cursos, dois deles no campo da filosofia, e que ele poderia ministrar esses cursos em francês, inglês ou alemão. O ministro não respondeu. Então ele disse a si mesmo que não tinha havido resposta porque tinha escrito em alemão. Então ele vai a livraria e compra o livro Como falar Servocroata através do Alemão. Depois de três, quatro, cinco meses, não me lembro bem, ele já é capaz de falar (porque Álvaro, se não me falha a memória, fala e escreve em dez línguas), e aí ele escreveu em servocroata, fazendo o mesmo oferecimento. Também não teve resposta.

J. Chasin – Já não era uma questão de idioma…

P. Freire – Já não era uma questão de idioma. Era uma questão de linguagem. Eu, então, no Chile, ao nível do Ministério de Educação, falo da contribuição que ele poderia dar e o ministério se abre para recebê-lo. Mas aí precisava que se trabalhasse ao nível da diplomacia e o Paulo de Tarso e o Plínio Sampaio, que eram muito amigos do Ministro das Relações Exteriores do Chile, vão lá e colocam a questão. E o Álvaro veio e o Governo iugoslavo pagou a passagem dele e da esposa. Quer dizer, ele não tinha críticas ao governo, ele tinha mágoas de não ter podido dar a contribuição que ele queria. Fui esperá-lo, no aeroporto da cidade de Valparaiso, e vejo Álvaro com uma boina, uma figura estranhíssima, e um capote negro, que eu acho que foi do paí ou do avô dele. Finalmente chega a hora do exame das malas do Álvaro. O funcionário da alfândega foi abrindo as malas e perguntou: “o senhor, por favor, o que é que o senhor faz?” Então o Álvaro olha para ele e diz: “eu sou filósofo”. Aí o homem fechou a mala dele repentinamente e disse: “já viu filósofo com contrabando?” Eu achei uma maravilha essa história! Trouxemos o Álvaro para nossa casa e ele morou conosco um mês, talvez, e aí conseguiu um apartamento perto do nosso e eu o visitava diariamente. Bem, se deu, então um outro caso maravilhoso. Um ex-aluno dele, do ISEB, conseguiu um trabalho para ele no Centro das Nações Unidas, que discutia o problema da população, e ele fazia traduções. Ele traduzia do russo, do inglês, às vezes do inglês para o espanhol, e me parece que pagavam dois dólares por página e dava para ele viver direitinho. Além disso, havia um negócio do Ministério também. Um dia a diretoria desse Centro pediu que o Álvaro escrevesse uma crítica à demografia. E ele disse: “mas eu sou filósofo!” E ela: “mas é exatamente por isso que lhe peço”. Ele pede, então, uma bibliografia dos títulos que ela considerasse mais importantes. “Em que língua?”, perguntou ela. E ele disse, “não importa”. Então, ela trouxe em russo, espanhol, francês, inglês e português etc. Eu o visitava no período da leitura: ele leu e estudou aproximadamente 300 livros fundamentais. E, nos três outros meses, escreveu um livro extraordinário sobre demografia. Quer dizer, você vê, um homem desse, mesmo quando criticado, precisa ser respeitado.

J. Chasin – Você, quando se aproxima da questão do ISEB sempre fala em criticável. O ISEB é um equívoco total?

P. Freire – Não, não, eu acho que não é um equívoco total. O ISEB faz parte das positividades e das negatividades do tempo. O ISEB traz no seu corpo, no seu bojo, as marcas do seu tempo. O ISEB traz uma perspectiva nacionalista e explícita o chamado pacto das classes, que foi uma proposta do Partido Comunista Brasileiro, que colocava como luta prioritária a luta anti-imperialista e antifeudal, então isto não era apenas uma deformação ideológica do ISEB, mas tratava-se de um negócio mais amplo. Mais amplo do que apenas um educador, como eu, metido naquele negócio.

J. Chasin – Então o ISEB é, ou não é, apenas uma fábrica de ideologias?

P. Freire – Não. Eu com todo o respeito à crítica que se faz neste sendo, eu diria que, em primeiro lugar, dificilmente você encontra qualquer coisa que não seja ideológico, quer dizer…

J. Chasin – Mas no sentido restrito do ISEB?

P. Freire – Não, eu não sei se seria só isso…

J. Chasin – E quanto ao exílio?

P. Freire – Recentemente terminei de fazer a revisão dos originais de um livro onde publico uma conversa de aproximadamente 10 horas entre um exilado chileno e eu, realizada em agosto em Genebra, e que se chama Por Uma Pedagogia da Pergunta. O livro está revisto e está agora para ser impresso. Nesse livro falo muito da minha experiência do exílio e cito Vieira Pinto. É com ele que eu começo essa síntese rápida pra entrevista. O Vieira Pinto é o exilado mais sofrido com quem eu convivi. O Brasil lhe doía. O Brasil doía a Álvaro Vieira Pinto não apenas pela distância geográfica em que ele estava, mas doía o Brasil em Vieira Pinto também, e talvez sobretudo, por causa do antipovo que se vivia, no golpe de estado brasileiro. Era o testemunho da negação dos seus sonhos, que fazia que doesse o Brasil tão intensamente. Mas, a dor da saudade era tão grande quanto esta última e Álvaro às vezes chorava, conversando comigo. E dizia “Paulo, eu realmente não resisto viver longe do Brasil”. E voltou. Álvaro voltou em 67. Mas numa tarde de outono, ele me dizia: “estou encabulado Paulo, o exilado vive uma realidade de empréstimo”. E depois, e depois daquela afirmação do Álvaro, eu vivi intensamente a experiência deste empréstimo, eu vivi o que é isso. E descobri uma coisa no meu aprendizado, ao longo dos anos, eu descobri que o exílio, enquanto realidade de empréstimo, enquanto contexto secundário, só existe na medida em que é precedido do contexto original. Não é possível entender o exílio fora da inteligência da tensão existencial entre o contexto de origem, de onde a gente é expelido, e o contexto de empréstimo, aonde a gente chega. Então, o exílio implica, de um lado, o transplante, mas do outro um implante. E a questão que se coloca para o exilado é a sabedoria de transar essa tensão. Quer dizer, se você apenas aceita se ver como transplantado, você recusa a realidade de empréstimo, e você vive nostalgicamente a saudade do contexto de origem. E aí você frustra a sua presença na realidade nova, você transforma o contexto de empréstimo numa pura marquise, debaixo da qual você passa uma chuva. Mas não é possível viver assim! Mas se, por outro lado, você transforma o implante, na busca de superar o desarranjo emocional que o transplante provocou, se você transforma o implante num enraizamento, ou numa situação de profundo enraizamento na realidade de empréstimo, você estabelece a ruptura possivelmente com a sua identidade. No tal livro eu analiso muito longamente essas duas hipóteses. Aqui, numa pura síntese, eu diria que a partir dos meus quase 16 anos de saudade, mas nunca de nostalgia, eu aprendi que a transa dessa tensão é absolutamente fundamental para guardar em ti, de um lado, a tua identidade cultural e do outro, de te fazeres sentir útil, não apenas ao contexto, enquanto trabalhas lá, mas também ao povo de lá, a projetos políticos também, desde que tu tenhas a sabedoria de não te expores, na política partidária do contexto interno.