Possibilidade Ontológica do Conhecimento1

Cristina Paniago2

Um elemento de fundamental importância e de distinção entre as diversas metodologias é a pressuposição, ou não, no momento de se conceber o como se conhece, da possibilidade do conhecimento do real efetivamente existente.

As principais propostas metodológicas contemporâneas permanecem ou no terreno do empirismo clássico (apenas o singular é considerado como objeto do conhecimento, pois o único capaz de ser comprovado pela experiência), ou sob influência de Kant (é impossível conhecer a coisa-em-si, mas apenas as sensações que o objeto proporciona ao sujeito) ou, ainda, do hegelianismo (o sujeito processa seu auto-conhecimento ao identificar-se com o objeto).

Em contraste com todas essas correntes – e suas inúmeras variações -, é possível conceber, com base em Marx, uma proposta metodológica onde o conhecimento do real efetivamente existente, em suas dimensões singulares e universais, torna-se imprescindível à transformação da natureza e das relações entre os homens.

Já em suas obras da juventude, em debate travado com seguidores de Hegel, Marx rechaça veementemente a identificação entre o sujeito e o objeto. Numa passagem de A Sagrada Família, afirma que os filósofos especulativos conseguem explicar a atividade de identificar as diferenças do objeto como a auto-atividade do sujeito absoluto, como mero resultado de seu “próprio intelecto abstrato”, o que, segundo ele, na “terminologia especulativa, [significa] conceber a substância como sujeito, como processo interior, como pessoa absoluta, concepção que forma o caráter essencial do método hegeliano”.3

Para os “especulativos”, o movimento do pensamento do abstrato ao concreto, ao invés de reconhecer o real autonomamente existente, antes o define como um “concreto espiritual”, ainda cativo de determinações etéreas, subjetivamente construídas. O movimento de conhecimento do real acaba por retornar ao plano da subjetividade, com o que está definitivamente perdido o acesso ao ser-precisamente-assim existente.

No mesmo texto, na exemplificação dada sobre a “encarnação da substância, da fruta absoluta” e suas “cristalizações plasmadas” (a pêra e a maçã), Marx faz uma bem humorada referência às afirmações dos filósofos especulativos:

O que, por conseguinte, nos alegra na especulação é voltar a encontrarmos com todas as frutas reais, porém como frutas dotadas de uma significação mística mais alta, que brotam do éter de nosso cérebro, e não do solo material, que são encarnações da fruta, do sujeito absoluto.4

Segundo Marx, o idealismo desses filósofos os leva a ignorar as determinações do mundo real existente, concebendo a realidade como produto do pensamento. Rejeitam o enfrentamento do real enquanto objeto do conhecimento, esgueirando-se por um caminho onde “a especulação cria seu objeto a priori”, e é “[obrigada] a construir como absolutamente necessárias e gerais as determinações mais fortuitas e individuais do objeto”.5 Em definitivo, para essa corrente, no processo de conhecimento não comparece o mundo objetivo independentemente do sujeito enquanto agente do ato cognoscitivo.

Configura-se, assim, a inconciliável diferença entre o pensamento especulativo e os pressupostos metodológicos desenvolvidos por Marx. Para ele, o objeto real efetivamente existente se diferencia ontologicamente do objeto do conhecimento. Contudo, cabe à subjetividade capturar o real sem que, por isso, com ele se identifique. À subjetividade resta extrair do mundo objetivo todo o conhecimento necessário à reprodução social.

Em um conhecido texto de sua maturidade, os Grundrisse, Marx trata de como a subjetividade captura gnosiologicamente o real. Inicia assinalando que, no estudo da Economia Política, ao se utilizar o conceito de População sem determinar seus elementos constitutivos, este não passaria de uma abstração caótica e vazia de significado real. A “representação plena” estaria volatilizada e carente das determinações indispensáveis ao conhecimento do objeto pela consciência.

Somente com a decomposição do conceito em todos seus elementos constitutivos, tais como as classes, e, nestas, por conseqüência, destacando-se como elemento indissociável o trabalho assalariado, que é subordinado ao capital; capital, que se reproduz com a divisão do trabalho, e que tem como pressuposto conceitos como valor, preço, dinheiro, e assim por diante, é que se poderiam compreender o significado real de População e a complexa articulação entre os diversos conceitos subjacentes.

Ao se avançar nesse processo de “abstrações cada vez mais sutis”, continua Marx, poder-se-ia “alcançar as determinações mais simples”. Com base nelas, empreende-se o retorno à categoria População, não mais a encontrando como uma simples representação caótica do conjunto, mas sim como “uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações”. Nesse processo de determinação e particularização que resgata a concreticidade do objeto, este “Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o verdadeiro ponto de partida”.6

Para Marx, portanto, no processo de conhecimento do mundo objetivo, o contato com o imediatamente dado revela um todo caótico e desconhecido. Ao ser representado na consciência, esse todo carece ser decomposto num contínuo processo de análise e analogia com o já conhecido, para alcançar, via “abstrações cada vez mais tênues”, os conceitos mais simples entendidos como um passo a caminho das “generalizações determinadas, ou seja, delimitadas no conteúdo e na extensão”.7

A partir dos conceitos mais simples, num movimento de retorno – segundo Chasin, “no trânsito do abstrato ao concreto” -, um processo de síntese possibilita a recuperação do objeto concreto; possibilita que se alcance uma “rica totalidade com múltiplas determinações e relações”, obtendo-se assim “a reprodução do concreto pelo caminho do pensamento”. É o método das duas vias (ida e volta), “manifestamente, o método científico correto”, segundo Marx.8

Essa passagem dos Grundrisse é reconhecidamente muito difícil, e sua interpretação tem provocado acirrados debates. O que faremos neste artigo é seguir a exploração que dela fez Lukács – em especial do aspecto da subjetividade nesse processo de captura do real.

A via de acesso da consciência ao real

O mundo objetivo é composto de infinitas mediações, compreendidas “enquanto cadeia viva entre a singularidade e a universalidade”.9 À consciência, elemento ativo no processo de reprodução social, é colocada a necessidade de produzir o conhecimento das situações singulares, das generalizações universais e do modo particular em que se articula o mundo objetivo. Caso assim não proceda, fica inviabilizada a realização das finalidades previamente concebidas pela consciência no ato do trabalho (locus da síntese de teleologia e causalidade)10; esta torna-se incapaz de gerar o novo, e, portanto, de assumir um domínio cada vez mais avançado da natureza.

Para Lukács, essa necessidade impõe ao sujeito uma captação muito mais precisa da objetividade e, conseqüentemente, uma expressão mais exata que recolha precisa e inequivocadamente as determinações específicas do objeto de que se trata, mas abarcando ao mesmo tempo as conexões, relações, etc., que são imprescindíveis para a execução do processo de trabalho.11

O movimento contínuo da realidade objetiva coloca sempre novos desafios à subjetividade, exigindo que o processo de conhecimento se renove a partir do contato com o objeto imediatamente dado. No cotidiano, é comum nos depararmos com algo desconhecido e, portanto, para a consciência carente de determinações -, onde o imediatamente dado é visto como uma singularidade indeterminada. E, por ser indeterminada, é indizível.

É necessário, então, que ele seja analiticamente decomposto, relacionado a categorias universais já conhecidas, para que a subjetividade, descobrindo as suas mediações, possa identificar suas “legalidades particulares e gerais”.

Num primeiro momento, na ausência dos traços de universalidade necessários à determinação do imediatamente dado, encontrando-se ele impossibilitado de ser referenciado pela linguagem12, tem-se a sensação de perda do objeto. Escapa à consciência o domínio imediato do novo. No entanto, impulsionada pelo movimento real das coisas e premida pela necessidade de garantir a sobrevivência e desenvolvimento humanos, torna-se inevitável o enfrentamento do real.

Nesse primeiro momento do processo gnosiológico, com base no conhecimento já adquirido na vivência histórico-social do sujeito, o pensamento utiliza-se da intuição para a escolha das possibilidades de investigação sugeridas pelo objeto, e para a busca das alternativas que viabilizem sua identificação, ou sua diferenciação.

O sujeito inicia o contato com o objeto singular num intenso exercício de abstração e mentalização. Nesse momento, a consciência tem na abstração o locus da negação do singular imediato. A abstração, como instrumento do pensamento, passa a negar a indizibilidade do singular num crescente. processo de generalização sempre mais determinante, através da utilização de “abstrações isoladoras”.13 Estas, por sua vez, permitem que as noções iniciais promovidas pela análise sejam organizadas e selecionadas, ao mesmo tempo que superadas, quando do percurso pelo campo das mediações no sentido da particularidade.

No uso das abstrações isoladoras, tanto as semelhanças como as diferenças assumem igual importância, devendo-se evitar a homogeneização simplificadora do real e a violentação de sua natureza objetiva. Assim, no desenvolvimento das generalizações dos traços sublinhados e na determinação da multiplicidade de características intrínsecas ao objeto mentado, preserva-se a unidade do diverso.

Ao embrenhar-se a subjetividade no processo de abstração do singular indizível apresenta-se um problema. Diversas generalizações tornam-se igualmente possíveis, sendo que nem todas levam à aproximação do concreto pelo pensamento. É, portanto, imprescindível que se alcance um nível de abstração “razoável”, que se pressuponha que “a intensificação do conhecimento da singularidade [seja], por sua vez, uma função de generalizações afortunadas, muito abarcantes, de ampla aplicabilidade, etc.14 O grau de razoabilidade é percebido pela subjetividade através da mediação da práxis social, e na objetivação do trabalho que se torna, assim, o ato probatório da realização final de um acertado processo de abstração e de especificação das noções inicialmente formuladas.

Em suma, o processo de conhecimento empreendido pela subjetividade depara-se, num primeiro momento, com a representação caótica do todo, que passa a ser “volatilizada em uma determinação abstrata” com base na definição de seus traços mais especificadores. Caminha, portanto, no sentido da generalização e vai afastando-se daquele estado indizível até atingir os conceitos simples.

Esse momento, sublinhemos, refere-se ao caminho de ida. O segundo momento é aquele em que “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto”; constitui-se no caminho de volta ao objeto mediante a conquista da concreticidade antes oculta.

Argumenta Lukács que a quebra da indizibilidade da singularidade processa-se num dinâmico ato de negação, ao isolá-la abstratamente de sua materialidade imediata e defini-la em cada vez mais elaborados conceitos; e de reflexão, pois o impulso originário vem da realidade exterior e imediata, sendo que ambos os movimentos exigem que o retorno seja não mais àquele singular imediato, mas sim ao concreto pensado imbuído das mediações necessárias à sua generalidade determinada, ou seja, à forma de particularização do objeto.

Nesse momento do processo de aproximação ao real, mesmo de posse de um certo grau de determinação e dos conceitos simples, permanece ainda insatisfeita a necessidade de determinar a qual dado objeto se refere, “mesmo quebrada a indizibilidade do singular com a abstração dizível, [isto] ainda não é suficiente para determinar este singular, mas sim permanece referido a uma infinidade de estes sem resgatar sua concreticidade. As abstrações processadas restringem-se a generalizações indeterminadas”. Caso se parasse por aqui, “O concreto permaneceria oculto e a abstração dizível manter-se-ia dizendo sempre a sua mesma pobre abstração.15

Coloca-se assim como necessário dar o próximo passo no caminho do conhecimento do real, iniciando-se a síntese das múltiplas determinações, ou seja, o caminho de volta ao concreto pensado.

A abstração passa a negar-se ao alcançar um nível de generalização mais determinada, fazendo com que o pensamento percorra o campo de mediações entre a singularidade e a universalidade no sentido de aproximação do concreto, ou melhor, da particularidade enquanto veículo do determinado: “enquanto categoria portadora da ‘função criadora de determinação’, seja delimitando o universal, seja expandindo o singular.”16 No exercício do conhecimento, por esse caminho de volta, estará superada a fase de contato inicial com a individualidade imediata do ser, e realizada, na processualidade concreta vivenciada pela consciência, a determinação efetiva das especificidades do ser. Ter-se-á não mais uma representação caótica do todo, mas uma rica totalidade de determinações, bem como a identificação, pelo pensamento, das múltiplas e diversas relações do real concreto.

Bases ontológicas da Particularidade

O modo de funcionamento do pensamento no conhecimento do real, no entanto, não significa que o real tenha como momento fundante o pensamento. Para Lukács,

A consciência se vê constrangida a comprovar e conceber mediações porque a vinculação dos objetos do mundo externo se baseia em grande medida nelas. A contraposição e a vinculação dialética da imediatez e a mediação existem também objetivamente, com independência da consciência.17

A exigência de o conhecimento tratar da singularidade18 em sua imediatez, dar-lhe voz ao projetá-la no plano da generalidade e de, ao percorrer o campo das mediações portador das determinações próprias ao objeto, retornar a ele como o concreto no pensamento é originária no próprio real. É a manifestação abstrato-subjetiva de como o mundo, externo à consciência, se comporta.

Esse modo de operar da subjetividade, além de refletir a lógica objetiva da particularidade, também é determinado por condicionantes histórico-sociais que circunstanciam a efetividade das abstrações e concreções por elas processadas. Segundo Lukács, “o grau dessa aproximação [da consciência ao real] está determinado pelas necessidades e as possibilidades do pensamento em cada estádio da evolução históricosocial.”19

Necessidades tais colocadas pela reprodução social que exigem que a consciência torne crescentemente visível o que lhe é desconhecido (e, portanto, oculto na sua imediatez), como condição à apreensão das particularidades presentes na realidade. E possibilidades, fomentadas pelo conhecimento e pela riqueza material acumulados social-historicamente, que proporcionem – às abstrações efetivadas pela consciência – a exploração de forma exaustiva e proveitosa das relações existentes no mundo objetivo com o fim de resgatar a particularidade do ser.

Na continuação do mesmo texto, Lukács ressalta que a afirmação acima carece de precisão quanto a seus efeitos, pois

Quando a subjetividade – ainda que condicionada histórico-socialmente – projeta efetivamente na realidade suas próprias necessidades e seus próprios desejos e os põe como realidade objetiva, se apresentam aquelas contradições […], nas quais, caracteristicamente, o comportamento antropomorfizador não desemboca em uma reprodução da particularidade, senão em uma generalidade subjetivamente fundada.20

Há uma clara distinção a ser ressaltada entre a necessidade projetada no plano da subjetividade e aquela colocada pela realidade objetiva. A imersão “dos próprios desejos” na realidade objetiva, compondo parcialmente essa objetividade, redunda em um comprometimento da captura da concreticidade do existente. Esse passa a ser constituído pela “generalidade subjetivamente fundada”; dissolve-se a “reprodução da particularidade” numa simples abstração etérea.

Em Lukács, é fundamental a afirmação de que a dimensão subjetiva da lógica da particularidade se refere à forma em que opera a consciência ao conhecer o objeto; objeto distinto dela e existente independente de seu prévio conhecimento. O objeto é dado no mundo real; mesmo com o trabalho, através do qual a ação consciente do sujeito pode gerar objetividades antes inexistentes, ainda assim permanecerão preservadas a exterioridade e a autonomia do ser ante o pensamento. O pensamento precisa, para iniciar o processo de conhecimento, do estímulo do próprio real; para Lukács, sentido inverso ao defendido por aqueles que concebem o real como produto de conceitos e valores fecundados pela consciência.

A partir de Marx, segundo o filósofo húngaro, está descartada a possibilidade de se conceber o objeto como produto do pensamento, num movimento de abstração isento de qualquer vinculação com a realidade. Há uma clara inversão no sentido defendido pelos idealistas, de origem hegeliana ou não, quanto à articulação do real com o pensamento.

O imediatamente dado no mundo objetivo constitui-se no ponto de partida do pensamento. Mas este, para conhecer o real, deve acionar seu poder de abstração e quebrar a indizibilidade imediata do ser atribuindo um caráter expansivo à singularidade; deve precisar os traços de universalidade na: relação com o mundo concreto. E, na recuperação das mediações existentes entre os pontos extremos – da singularidade e da universalidade -, deve recuperar o real enquanto concreto no pensamento.

De maneira enfática Lukács afirma, a respeito dos três graus de generalidade, que

não basta estabelecer que a natureza objetiva do mundo nos impõe a diferenciação entre singularidade, a particularidade e a generalidade, ou seja, que a afirmação humana dessas categorias é um elemental processo ditado pelo Em-si; há que compreender ademais que também a conexão dessas categorias é um processo elemental determinado pela objetividade.21

Isto posto, verifica-se uma relação dialética entre o objeto em-si e o produto do pensamento – uma reciprocidade entre o real e o conhecimento adquirido pela consciência.

Cabe salientar que, sempre segundo Lukács, a apreensão do real pelo pensamento consegue apenas uma aproximação do objeto e não uma reprodução perfeita, pois sua concreticidade é resultado de uma constante tensão entre a singularidade e a universalidade, que compõem um complexo campo de mediações constituído de uma gama de possibilidades altamente dinâmicas, conferindo a cada objeto um caráter particular e único. Portanto, o objeto é impossível de ser conhecido como um ser estacionário e alheio à pulsão dialética entre as categorias da generalidade.

Tanto o objeto como a subjetividade já serão outros no momento seguinte ao conhecimento inicial. Novas relações serão consumadas, sendo impossível a fixação de um único momento como o ponto final do conhecimento. E, ao tomar a subjetividade posse daquelas determinações do real, já se encontra capaz de realizar novas associações e gerar novos conhecimentos e novas objetividades.

Portanto, dada a forma, de ser do mundo real, é impossível a total identidade do sujeito e do objeto. À subjetividade só resta alcançar uma cada vez mais intensa aproximação do objeto através de um eficiente domínio de suas complexas determinações.

O processo “de ida e de volta” como forma genérica de proceder da subjetividade concebida como ontologicamente distinta do objeto: este é o núcleo decisivo da leitura de Lukács da passagem dos Grundrisse acima referida.

Com a lógica da particularidade ficam superadas as diversas posições filosóficas que oscilam entre os limites ao conhecimento do mundo objetivo pelo homem impostos pela fetichização do singular, ou do universal. E, também, ficam superadas as posições à Kant, que reduzem o objeto ao mero fenômeno subjetivamente produzido. Com isso, fundamenta-se a capacidade dos homens para conhecer e, portanto, transformar o real. E, com todas as mediações cabíveis, de assumir conscientemente os destinos de sua própria história.

1Capítulo publicado na coletânea : Lessa, S. (org.). Habermas e Lukács: método, trabalho e objetividade. Maceió : EDUFAL, 1996.

2Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas – 1996.

3Marx, C., Engels, F. La Sagrada Família. México: Ed. Grijalbo, 1960, p. 125.

4Idem, ibidem, p. 124.

5Idem, ibidem, p.126.

6Marx, K. Grundrisse (edição em espanhol). Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1973, p. 21.

7Chasin, J. “Lukács: Vivência e Reflexão,da Particularidade”. In Escrita/Ensaio, 2. ed., São Paulo: Ed. e Livraria. Escrita, n.9, 1981, p. 60.

8Marx, op. cit., p. 21.

9Chasin, op. cit., p. 59.

10O Trabalho, na concepção marxiana, é o momento da objetivação de uma prévia-ideação (teleologia) orientada à modificação da materialidade existente na esfera natural e social (causalidade). Sobre a importância decisiva da esfera gnosiológica para o trabalho ver Lessa, S. “A Centralidade do Trabalho na Ontologia de Lukács”, Tese de Doutorado, UNICAMP, 1994.

11Lukács, G. Estetica. V.3. Barcelona-México: Ed. Grijalbo, 1967, p. 201.

12De acordo com a concepção lukácsiana, a linguagem serve de veículo às conexões inicialmente determinadas no processo de generalização das intrínsecas características do ser. Mesmo a mais primária afirmação lingüística pressupõe a presença de certo grau de universalidade, permitindo assim a transformação da mudez do objeto singular, considerada sempre a totalidade de suas mediações, em algo cada vez mais determinado.

13Em sua Ontologia, Lukács se refere às abstrações isoladoras afirmando que “Quer tomemos a própria realidade imediatamente dada, ou mesmo seus complexos parciais, o conhecimento imediatamente direto da realidade imediatamente dada resulta em meras representações. Estas, por isso, devem ser melhor determinadas com -a ajuda de abstrações isoladoras.” Lukács, G. Per una Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Ed. Riuniti, VA, 1976-81, p. 285.

14Lukács, G. Estetica. V.3. Barcelona-México: Ed. Grijalbo, 1967, p.206.

15Chasin, op. cit., p.64.

16Idem, ibidem, p. 65.

17Lukács, op. cit., p. 213.

18Afirmação também válida no sentido do universal ao campo de mediações da particularidade, pois, segundo Lukács, ‘o determinante e o determinado não se enfrentam como dois mundos que se excluíram; o processo de determinação consta […1 da reciproca mutação entre ambos.’ (Idem, ibidem, p. 211).

19Idem, ibidem, p. 206.

20Idem, ibidem, p. 232

21Idem, ibidem, p. 200.

Economia centralmente planificada, Hayek e a mancha vermelha de Júpiter.

Essa é uma tradução do artigo “THE CENTRALLY PLANNED ECONOMY, HAYEK, AND THE RED SPOT OF JUPITER.” do site Cold and dark stars. O artigo original pode ser lido aqui:
Artigo original

Após a queda da União Soviética, economistas marginalistas proclamaram triunfantemente que o mercado é o único sistema realista para administrar nossa complexa civilização global de bilhões de pessoas. Embora a falta de moradia, as casas desocupadas, a fome e o desperdício de alimentos persistam, os marginalistas argumentarão que o mercado não é perfeito, mas que não existe alternativa melhor. No entanto, a catástrofe iminente da mudança climática, pode (re)colocar a questão de uma economia socialista democrática e globalmente planejada. O aquecimento global foi quase inteiramente causado pelas leis do movimento do capitalismo, que levam ao desgaste dos corpos e da Terra, dada a forma como a competição leva as empresas e os estados-nação a colher os mais baratos recursos naturais e do trabalho. Além disso, o fato de que a duração da jornada de trabalho não diminuiu em quase um século, e o imperialismo exacerbou as assimetrias predatórias entre o centro e a periferia, deveria tornar a questão do planejamento econômico global central para os socialistas.

A economia planificada possui uma injusta má reputação, mesmo entre os socialistas. O debate parece ter sido resolvido na primeira metade do século 20 com o chamado “problema do cálculo socialista”, onde economistas marginalistas como Hayek e Mises criticaram a incapacidade das economias centralmente planejadas de computar a autêntica oferta e demanda de bens específicos. Hayek em particular, deu o ataque mais sofisticado, com seu ensaio, O Uso do Conhecimento na Sociedade, onde argumentou que o mercado agia como um computador inconsciente e distribuído, onde os recursos são alocados eficientemente através do cálculo da demanda de bens por sinalização de preços entre diferentes partes do sistema (por exemplo, indivíduos e empresas). Muitos socialistas criticaram os argumentos de Hayek ao longo do último século, mas muitas das respostas socialistas são colocadas de uma perspectiva filosófica e epistemológica. No entanto, acredito que o argumento para o planejamento central pode ser contextualizado usando novas ciências matemáticas, como ciência da computação e dinâmica não-linear – campos que não existiam nos dias de Hayek. Por isso, tentarei contextualizar o argumento de Hayek usando um método mais “matemático” (mas não quantitativo) e retrucarei de uma perspectiva socialista a favor da economia planejada.

O ponto principal do argumento de Hayek é que os planejadores centrais não têm possibilidade de conhecer todas as informações necessárias para alocar bens com eficiência em uma sociedade. Em contraste, o mercado funciona como um sistema gigante de computação distribuída, onde empresas e indivíduos agem como “processadores paralelos”, onde cada processador individual calcula um pequeno problema local: um lojista calcula que uma determinada marca de cigarros é muito popular em sua vizinhança e o consumidor calcula sua demanda individual por cigarros no momento em que olha para as marcas de cigarros disponíveis. Os processadores paralelos, que são incorporados em indivíduos, firmas e instituições, então por sua vez, comunicam-se uns com os outros, finalmente calculando coletivamente o preço de uma mercadoria em particular, que incorpora a demanda agregada e a oferta de um bem em particular. Para concluir, os planejadores centrais nunca podem adquirir todas as informações necessárias para calcular eficientemente as necessidades e desejos de um bem em particular, enquanto o mercado, que atua como uma rede distribuída de núcleos de processamento, pode alocar bens com eficiência porque cada processador calcula um problema menor e mais simples (por exemplo, a preferência de um indivíduo por cigarros Marlboro, ou a observação por um pequeno lojista de que cabos USB de 1,5m se esgotam de forma anormalmente rápida em uma determinada loja) e se comunica com outros processadores através de preços e compra, levando a alocação de bens onde esses são demandados.

O velho socialista contesta que não há nada de eficiente no mercado, dadas as casas vazias, a comida desperdiçada, a pobreza massiva, os ciclos econômicos e etc. Entretanto, os marginalistas retrucariam que o mercado como um sistema de computação distribuída tem seus problemas, mas sempre será melhor do que o planejamento central, citando a escassez de papel higiênico e as longas filas de pão. Hayek argumenta que o problema é, em última análise, sobre a informação – o planejador central nunca terá informações suficientes a tempo para planejar a demanda no nível granular – por exemplo a demanda por uma marca específica de cigarros, ou pelo tamanho certo de um smartphone ou uma determinada máquina de lavar roupa.

No entanto, o ataque hayekiano ao planejamento central é válido apenas no nível granular. Se a forma forte do ataque hayekiano contra o planejamento central fosse verdadeira, então as ciências naturais seriam invalidadas. A falta de informação no nível granular é realmente um problema comum nas ciências naturais – onde, por exemplo, podemos prever o clima (a temperatura média da Terra ao longo de dez anos), mas não podemos prever o tempo (a temperatura, precipitação, etc por cem quilômetros quadrados em um determinado dia). Da mesma forma, podemos prever as propriedades termodinâmicas médias de um gás, como temperatura ou pressão, mas não podemos prever o movimento de uma molécula individual do mesmo. Isso pode ser entendido no jargão científico como ruído aleatório em escalas locais que torna as teorias mais incertas em escalas menores, mas ainda permite previsões e modelagem em escalas maiores. O “ruído aleatório” pode ser considerado como imprevisibilidade devido à falta de informação em escalas menores. Por exemplo, no caso da previsão do tempo, a falta de informações sobre todas as variáveis que afetam o clima, como medições precisas de temperatura, erros numéricos decorrentes dos computadores resolvendo as equações hidrodinâmicas que governam o fluxo de ar, a modelagem inadequada da geografia, etc., leva rapidamente a resultados imprecisos em nível local. No entanto, no caso de previsões sobre as escalas globais do clima, como a temperatura média de toda a Terra nos próximos dez anos, o ruído estatístico em escalas menores torna-se irrelevante. O que Hayek sugere é que, como o ruído estatístico existe em um dado sistema econômico, o planejamento econômico é absolutamente impossível. Ele enquadra seu argumento como informativo, afirmando que o planejador central não tem informações suficientes sobre a demanda de bens no nível local. No entanto, muitas ciências naturais têm de lidar com o ruído estatístico extremo em pequenas escalas, tornando a previsão apenas possível em escalas maiores, de modo que seu argumento parece invalidar também as ciências naturais, como astronomia, ciência climática e ecologia. Portanto, um cientista responderia que seu argumento só se aplica às escalas menores, onde o ruído domina, e não diz nada sobre sistemas de escala maior. Hayek argumentou que não se pode comparar as ciências econômicas e naturais, porque as segundas estão preocupadas com leis naturais objetivas, enquanto as ciências econômicas estão preocupadas com desejos humanos subjetivos; no entanto, esse argumento é irrelevante, porque desejos óbvios podem ser quantificados, o que é precisamente o que psicólogos ou firmas como a Amazon fazem.  Por fim, a evidência empírica invalida seu argumento contra o planejamento, pois a instituição da propriedade privada e o estado de direito, necessários à existência do mercado, são sistemas nacionais, em grande escala e às vezes internacionais, que requerem uma quantidade excessiva de coordenação e planejamento, dado que estas instituições têm sobrecarga incrível sob a forma de polícia, burocratas, advogados e juízes. Essas instituições são formalmente necessárias para o mercado em geral, mesmo que não exista bem-estar social e regulamentação alimentícia.

Outro ataque interessante contra o planejamento vem de Nassim Taleb, que reviveu o argumento hayekiano em espírito, mas com o uso de ferramentas estatísticas modernas. Seu ponto mais importante é a existência de “cisnes negros”, eventos extremos raros e imprevisíveis que podem desencadear mudanças radicais em um dado sistema. Alguns exemplos de cisnes negros são terrorismo, grandes inundações de cidades costeiras e desastres nucleares. Todos estes são eventos raros com consequências extremas e quase imprevisíveis. Por exemplo, a contagem de corpos do terrorismo é altamente variável, de um par de pessoas morrendo em um determinado evento, para milhares de pessoas. O terrorismo também pode desencadear instabilidades sociais imprevisíveis em um determinado sistema político. Outros cisnes negros vêm na forma de obras de artes famosas, crises econômicas, a derrubada de governos e eventos históricos mundiais. O problema do planejamento econômico, então, é que, por sua própria natureza, é cego aos cisnes negros; assim, economias planejadas são muito frágeis a choques imprevisíveis, não muito diferentes de um mecanismo de relógio muito complicado que pode desmoronar no instante em que um dos dentes da engrenagem quebra. No entanto, a existência de cisnes negros como choques econômicos não é realmente um argumento contra o planejamento econômico, dado que as sociedades humanas ao longo da história sempre foram ameaçadas por cisnes negros e choques, com doenças, guerras e invenções tecnológicas acabando com sociedades inteiras. Então, quer a economia seja planejada ou não, cisnes negros perigosos ainda podem aparecer. Uma maneira de lidar com cisnes negros é com um gerenciamento de riscos sensato; embora não possamos prever cisnes negros, podemos projetar sistemas robustos a choques. Por exemplo, edifícios em regiões sismicamente ativas são construídos para resistir a terremotos, que são cisnes negros, dada sua raridade, natureza extrema e imprevisibilidade. Hipoteticamente, não há razão para que economias não sejam construídas para resistir a choques.

Minha réplica ao argumento hayekiano é altamente abstrata e formal, dado que a forma original do argumento de Hayek é muito formalista. No entanto, seria interessante ver como seria uma economia global planejada e como a incerteza granular apontada por Hayek seria resolvida. O planejamento econômico poderia ser feito de dois processos: um planejamento distribuído e descentralizado a partir de baixo e um planejamento centralizado de amplo curso a partir de cima. O planejamento central amplo seria dirigido por conselhos eleitos e revogáveis, mas lidaria com o planejamento no nível central, global, lidando com objetivos planetários, como garantir que a economia não ultrapasse as restrições ecológicas (por exemplo, o aquecimento global). Outro objetivo de planejamento global seria reduzir a duração do dia de trabalho. Este último ponto é importante, dado que marginalistas como Keynes prometeram um dia de trabalho curto que seria desencadeado pelo movimento do mercado. No entanto, agora é óbvio que o tamanho do dia de trabalho é inteiramente planejado e político, e não pode ser reduzido apenas pelo comportamento estocástico do mercado. De fato, a diminuição histórica do dia de trabalho aconteceu inteiramente por causa da legislação desencadeada pela atividade militante da classe trabalhadora. Finalmente, o planejamento central global teria que lidar com problemas globais exacerbados como a desigualdade global e o imperialismo. O planejamento distribuído e descentralizado, a partir de baixo, seria responsável pelos cálculos microeconômicos de oferta e demanda de bens específicos, como o modo adequado de armazenar estoques para os consumidores. O capitalismo é competente na parte microeconômica, estocando lojas com mercadorias baseadas na oferta e na demanda, mediadas por sinais de preços – este último ponto estava no centro do argumento de Hayek. No entanto, não há razão para que cálculos microeconômicos eficientes não possam ser feitos por conselhos locais e democráticos com o auxílio de computadores avançados. Os dados de entrada sobre os desejos e necessidades do consumidor, que podem ser sinalizados pelo que os indivíduos compram nas lojas, podem ser rapidamente processados por algoritmos de aprendizado de máquina, não muito diferentes de como as compras e o preço do capitalismo propagam as informações de oferta e demanda. Na verdade, esse tipo de processamento de big data já é feito com planejamento intra-empresa hoje, com empresas como Amazon e Wal-Mart planejando a alocação de recursos com base em dados do consumidor que são processados com algoritmos de aprendizado de máquina. Os conselhos democráticos socialistas que planejariam os movimentos microeconômicos também poderiam atuar como firmas semiautônomas, mas de propriedade pública, usando uma abordagem semelhante de cálculo microeconômico que as empresas capitalistas modernas, mas sem depender de sinais de preços, fazendo isso através do uso de big data do consumo e informações relacionadas a restrições globais, como recursos mundiais, planos de desenvolvimento global, risco ecológico, alocação de recursos globais, etc. (essas restrições globais seriam produzidas pelos conselhos de planejamento global).
O planejamento global é fortemente hipotético e exigiria a existência de uma república socialista mundial. No entanto, dadas as duras restrições planetárias que o aquecimento global desencadeou, é urgente defender alternativas à anarquia do mercado. Se os socialistas não defendem uma alternativa, facções da classe capitalista, como os fascistas, certamente apresentarão suas próprias formas de economias centralizadas e autoritárias, dadas as ameaças sociais e políticas que o aquecimento global traria à mesa. O aquecimento global vai desencadear desastres humanitários que levarão a consequências sociais e políticas inquantificáveis, como uma enorme crise de refugiados que irá encorajar reacionários e nacionalistas. Portanto, o problema que os socialistas enfrentam não será apenas ecológico, mas político, e se não trouxermos nossa própria alternativa à mesa, nossos inimigos o farão.

Big-data e Supercomputadores: Fundações do cyber-comunismo.

Essa é uma tradução do artigo “Big Data and Super-Computers: foundations of Cyber Communism” do cientista da computação e marxista escocês Paul Cockshott. O artigo original pode ser lido aqui:
Artigo original

Eu estarei elaborando as seguintes teses:

  • A inabilidade do socialismo do século XX avançar para o comunismo, levou a crise da URSS.
  • O comunismo requer um estágio definido de desenvolvimento tecnológico.
  • Esse estágio só foi alcançado no final do século XX.
  • O problema de adequação técnica não pode ser entendido somente em termos humanistas de “Abundancia”, ou em termos de “Reino da necessidade”.

No processo, abordarei o que considero como equívocos sobre o comunismo por parte dos soviéticos, antes de analisar os estágios de transição necessários para que uma economia moderna alcance o comunismo.

O que é um modo de produção

O socialismo é um modo de produção?
A definição padrão, derivada de Stalin, é que um modo de produção é uma combinação entre as forças produtivas e as relações de produção:

Modo de produção = forças produtivas + relações de produção.

Isso foi resumido por Stalin como segue:

“Porém as forças produtivas não são mais do que um dos aspectos da produção, um dos aspectos do modo de produção, o aspecto que reflete a relação entre o homem e os objetos e as forças da natureza empregados para a produção dos bens materiais. O outro fator da produção, o outro aspecto do modo de produção, é constituído pelas relações de uns homens com outros, dentro do processo da produção, pelas relações de produção entre os homens.” [19]

Essa tem sido a ortodoxia, mas eu penso que ela está errada. Outro significado do termo “Modo de produção” é, de acordo com Marx, o modo de produção material. Este modo de produção, de acordo com o prefácio de Marx de 1857, condiciona a vida social e política. As relações de produção só devem ser adequadas às forças produtivas:

“Na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual.  [12]

Essa concepção havia sido exposta por Marx dez anos antes, na sua famosa frase:

“O moinho de mão dar-vos-á a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial.” [11]

Nessa concepção, a característica essencial da produção capitalista é a sua indústria de maquinas (machine industry), produção por meio de maquinas “motorizadas” (movidas a vapor). Mas isso deve nos dar uma pausa para pensar, o socialismo também não é caracterizado pela produção por meio de maquinas, pelo uso de formas artificiais de energia?
Lembre-se que Lenin expressou essa mesma ideia quando deu a seguinte equação:
Socialismo = Soviets + Eletrificação
Como a diferença entre energia a vapor e energia elétrica é secundaria, e sabendo que economias capitalistas também usam eletricidade, o ponto importante é que capitalismo e socialismo compartilham do mesmo modo de produção.
Nós podemos resumir isso em duas equações que definem o modo de produção:

Modo de produção capitalista = indústria de maquinas movidas a energia.
Modo de produção socialista = indústria de maquinas movidas a eletricidade

Portanto o modo de produção socialista é um subconjunto do modo de produção por maquinário – Que utiliza grades elétricas a nível nacional. Por isso o primeiro objetivo da URSS foi criar o plano de eletrificação GOELRO.
Capitalismo e socialismo não se diferenciam tanto no seu modo de produção quanto em suas relações sociais.
Relações de produção capitalista = Produção de mercadoria + Propriedade privada + Trabalho assalariado + anarquia de mercado
Relações de produção socialista = Produção de bens de consumo + Propriedade pública + Trabalho assalariado + planejamento.

As diferenças principais são que:
1- As relações de produção socialistas podem restringir a forma-mercadoria ao mercado de bens de consumo.  Dentro do setor público não existe mudança de posse, pois os meios de produção vão de uma fábrica do estado para outra, portanto esses bens não são mercadoria.
2- A economia socialista substitui a propriedade privada pela publica.
3- Ela (a economia socialista) substitui a anarquia de mercado pelo planejamento diretivo.
Essas são diferenças nas relações de produção, mas não no modo de produção.

Marx vs URSS sobre o comunismo

Marx, no Critica ao programa de Gotha apresenta um processo de três estágios de transição para o comunismo:

  • Capitalismo
  • Comunismo de primeiro estágio, sem mercadorias ou dinheiro, sem proprietários privados, pagamento em “tokens” de trabalho, de acordo com o trabalho realizado. Serviços públicos pagos por um imposto de renda sobre a renda do trabalho.
  • Comunismo de segundo estágio, pagamento de acordo com as necessidades, famílias maiores, receberiam rendas maiores.

Note que mesmo no primeiro estágio, Marx assume a abolição do dinheiro. Também existe – contrariando as impressões espalhadas originalmente por Bukharin – nenhuma menção em Marx da ideia de que todos os bens irão ser distribuídos de graça em um sistema comunista. Distribuição de acordo com as necessidades é baseada em uma avaliação objetiva de necessidade – serviços de saúde gratuitos podem estar disponíveis para quem precisa, mas cirurgias cosméticas não. Agora deixe-me contrastar essa esquematização com o que se tornou a ortodoxia soviética, derivada dos textos de Bukharin mencionados anteriormente e de Stalin[18]. Novamente nós temos um modelo de 3 estágios:

  • Capitalismo
  • Socialismo: Mercadorias e dinheiro são mantidos, propriedade do estado + cooperativas, pagamento de salários em dinheiro de acordo com o trabalho feito e o status desse trabalho, impostos indiretos sobre vendas, não imposto de renda fornecem a principal receita do estado
  • Comunismo: Produção de mercadorias substituída por troca, distribuição gratuita de muitos bens, propriedade estatal total.

A diferença principal é que os Soviets identificaram o primeiro estágio do comunismo com algo muito menos radical: Socialismo. Eles esqueceram que Socialismo foi uma tendência muito mais ampla do que o comunismo, e que um capitulo inteiro no Manifesto Comunista foi dedicado a explicar como os comunistas eram diferentes dos socialistas. O socialismo da União Soviética foi essencialmente o socialismo de 1902 do revolucionário Karl Kautsky[17,10]. Todos os elementos chave estavam nesse trabalho de Kautsky. A pretensão de que uma economia monetária socialista era a mesma coisa de que uma economia comunista não monetária era uma exposição falsa.

Porque a URSS não alcançou o comunismo?

As bases materiais e técnicas do comunismo serão construídas até o final da segunda década (1971-80), garantindo uma abundância de valores materiais e culturais para toda a população; A sociedade soviética irá se aproximar de um estágio onde introduzira o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, e irá transacionar gradualmente para uma forma de propriedade-publica. Assim, uma sociedade comunista irá, em seu principal, ser construída na URSS. A construção da sociedade comunista será totalmente concluída no período subsequente
(Programa CPSU 1960)

A URSS em 1960 era ainda muito ambiciosa. Eles tinham um cronograma muito otimista para ultrapassar os EUA e em muitas indústrias-chave esse objetivo foi de fato alcançado.  A transição para o comunismo era vista somente em termos de quantidade de produção, não em termos de mudança das relações sociais. A eletrificação era ainda vista como um desenvolvimento técnico chave:  A eletrificação, que é o pivô da construção econômica da sociedade comunista, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de todos os ramos econômicos e na efetivação de todo o progresso tecnológico moderno. Portanto, é importante assegurar o desenvolvimento prioritário da produção de energia elétrica. É notável que nenhuma atenção foi dada a tecnologia da informação como uma tecnologia que possibilitaria o comunismo.

Quão bem eles realmente se saíram? A tabela 1 mostra que em seu objetivo principal de produção elétrica a URSS já em 1990 estava se saindo melhor do que os melhores países capitalistas europeus alcançaram um quarto de século depois.
Tabela 1: Comparação do energia disponível para diferentes economias convertido em equivalentes de esforço de trabalho humano per capta. A suposição é que um trabalhador manual poderia fazer 216 KWh por ano de trabalho.

Ano Gwh Trabalho humano
equiv per capta
China 2014 5665000 19.2
EUA 2014 4331000 63.1
EU 2014 3166000 19.7
URSS 1990 1728000 27.3
URSS 1940 48000 1.2
URSS 1931 8800 0.3
Russia 1913 1300 0.0
GB 2014 338000 24.8
GB 1907 61320 7.3

Isso era energia suficiente para o comunismo?

E quanto a produção de comida?
Quão bem se saiu a URSS em alcançar seus objetivos aqui?
Muito bem de acordo com a tabela 2

Tabela 2: Comparação da produção de alimentos fonte de proteína na União Soviética com o Reino Unido, Brasil e EUA. Note que para todas as categorias a URSS possuía números

Ano Carne Leite Ovos
Kg Kg Unidades
URSS 1988 69 375 299
Brasil 1988 49 96 163
RU 1988 55 265 201
EUA 1988 58
EUA 1990 236
EUA 1995 259

melhores. Fonte, base de dados[14] FAOSTAT e USDA.
Era comida suficiente para o comunismo?

Mas o crescimento soviético diminuiu seu ritmo. A era Kureschev havia assumido que o país continuaria com crescimento exponencial e definiu o comunismo em termos de se alcançar crescimento exponencial. O pressuposto de crescimento exponencial era irrealista. O crescimento real não pode ser exponencial por muito tempo, é inevitável que comece a desacelerar. Crescimento real tende a seguir uma curva logística como essa:
curva-logistica

O comunismo de Kruschev minimizou a mudança social

Em uma sociedade comunista não haverá classes, e as distinções socioeconômicas, culturais e nas condições de vida, entre cidade e campo irão desaparecer; o campo irá se elevar ao nível da cidade em desenvolvimento das forças produtivas e da natureza do trabalho, nas formas das relações de produção, nas condições de vida e no bem-estar da população.

(Programa CPSU 1960)
Mas o programa concreto não deu nenhuma medida para abolir as classes ou abolir dinheiro e mercadoria. Quando a impossibilidade de manter o crescimento de 10% se fez sentir, isso foi visto como uma falha do comunismo, uma vez que a mudança social não estava em seu núcleo. Se a sociedade não estava progredindo, ele falhou em inspirar as pessoas e no final da década de 80, comunistas não podiam mais resistir às pressões da ideologia capitalista

Os teóricos burgueses disseram que o comunismo era impossível

Von Mises

Somente dinheiro proveem uma base racional de comparação de custos. Calculo em termos de tempo de trabalho é impraticável por causa dos milhões de equações que necessitariam ser resolvidas

Hayek

O mercado é como um sistema de telefonia trocando informações para manter a economia funcionando. Somente o mercado pode resolver problema de informação dispersa.

Existe uma verdade limitada nisso. O Comunismo de Marx não era ainda possível em 1960 devido a limitações no processamento de informação. O primeiro estágio do comunismo de Marx presumia:

  • Nenhum dinheiro
  • Calculo em termos de tempo de trabalho e valor de uso
  • Pagamento em créditos de trabalho

Mas, para calcular o conteúdo de trabalho de todo bem, era necessária a solução de milhões de equações. Os computadores de 1960 não eram poderosos o suficiente. Isso teve efeito nas limitações do socialismo soviético.

Dinheiro era ainda necessário para o cálculo econômico mesmo no setor planificado. Havia um problema de agregação no planejamento que exigia a definição de objetivos monetários. Havia uma incapacidade de lidar com planos desagregados em todos os níveis da União. Dinheiro era ainda necessário para o pagamento de salários. Mas dinheiro levou ao mercado negro, corrupção e pressão para restaurar as relações capitalistas.

Desenvolvimentos chave nas forças produtivas desde 1960
Mas desde 1960 houve uma série de avanços técnicos que permitem a nós remover essas antigas objeções a economia comunista

Internet

Permite planejamento cibernético em tempo real e pode resolver o problema da dispersão de conhecimento – Objeção principal de Hayek

Big-Data

Permite a concentração da informação necessária para o planejamento.

Super-computadores

Podem resolver milhões de equações em segundos – objeção principal de von Mises

Cartões de credito

Permitem a substituição do dinheiro por créditos de trabalho não transferíveis.

Complexidade computacional

Quão fácil é resolver milhões de equações? Existem problemas que são computacionalmente intratáveis até mesmo para os maiores computadores. O planejamento econômico ou o uso do contábil do trabalho são dessa natureza? Não, não são. Em uma série de artigos [2,6,5,4,9,8], Allin Cotrell,  Greg Michaelson e eu mostramos que a complexidade computacional de calcular o valores de trabalho para uma economia inteira com N produtos distintos cresce em Nlog(N). Isso significa que é altamente tratável e facilmente resolvido por computadores modernos.

Democracia Direta

Também é possível a utilização de votos por redes de computadores e celulares para permitir controle democrático direto da população sobre a economia. Isso permitir que decisões estratégicas majoritárias sejam tomadas democraticamente, questões como: Quanto trabalho dedicar a educação? Quanto para saúde e pensões? Quanto para a proteção ambiental? Quanto para a segurança nacional? Quanto para novos investimentos?
Tudo isso pode ser feito por votação direta utilizando computadores e celulares durante o ano todo. Nós ja protótipamos software para agregar os desejos públicos dessa maneira [7,15,16,3]

Equivalencia

O princípio de Marx era que os bens não públicos deveriam ser distribuídos sobre o princípio da equivalência – você tem de volta em bens a mesma quantidade de trabalho – fora impostos – que você produziu. Dessa forma os bens são cotados em horas de trabalho. O feedback cibernético das vendas para o plano ajusta a produção às necessidades do consumidor, conforme mostrado na figura 1:

planprocess
Figura 1: Planejamento cibernético

Marx argumentou que o cálculo em termos de tempo de trabalho iria levar a grande eficiência. O sistema de salários desvaloriza o custo social real do trabalho e desencoraja o uso das maquinas mais modernas. Transição para o cálculo comunista irá levar ao uso racional do tempo de trabalho e ao crescimento mais rápido da produtividade do trabalho:

crescimento-produtividade-trabalho
Figura 2: O crescimento da produtividade do trabalho tem encolhido na última metade de século no Reino Unido. Taxas de crescimento calculadas como média móvel nos últimos 5 anos a partir dos dados do ONS para a produção por trabalhador para toda a economia.

crescimento-produtividade-internacional
Figura 3: O declínio no crescimento da produtividade é um fenômeno internacional. Dados obtidos das Extended Penn World Tables. Note que esses dados somente vão até o início da crise de 2008.

Em todo o mundo capitalista, esta lei está em vigor, retardando o crescimento da produtividade do trabalho. A classe capitalista procura trabalho barato, o que sistematicamente detém o progresso técnico. Eles demonstram uma falta de vontade crônica em investir. Economistas ortodoxos chamam isso de estagnação secular. Você pode ver o efeito deste declínio claramente na melhoria da produtividade de trabalho mostrado nas figuras 2 e 3.

Passos de transição para o primeiro estágio do comunismo.

“O proletariado usará a sua dominação política para arrancar a pouco e pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção na mão do Estado, i. é, do proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção.

Naturalmente isto só pode primeiro acontecer por meio de intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, através de medidas, portanto, que economicamente parecem insuficientes e insustentáveis mas que no decurso do movimento levam para além de si mesmas e são inevitáveis como meios de revolucionamento de todo o modo de produção.

Estas medidas (11*) serão naturalmente diversas consoante os diversos países. ”[13]

Apesar disso, na maioria dos países socialistas, as seguintes medidas comunistas são geralmente aplicáveis:

Medidas imediatas:

  • Unidade monetária convertida para a hora de trabalho definida pelo valor médio criado por hora.
  • Mudar o financiamento estatal de lucros de empresas estatais para o estado financiado pelo imposto de renda progressivo.
  • Legislação para garantir aos empregados o valor total nas “empresas”, após impostos.
  • Conversão das firmas privadas remanescentes em cooperativas
  • Desenvolver sistema centralizado de internet para rastrear todas as compras e vendas
  • Remover todo o dinheiro em papel e moeda, substituir por cartões de crédito eletrônicos.

Durante a preparação, a troca de mercadorias entre empresas ainda existe e as transações monetárias ainda são possíveis, mas a exploração é eliminada. Nos próximos estágios, as seguintes medidas podem ser apropriadas:

  • Eliminação da circulação privada de dinheiro, e dinheiro sendo usado somente para consumidores comprarem produtos de lojas publicas.
  • Troca de mercadoria entre empresas substituída por planejamento diretivo computadorizado.
  • Equalização das taxas salariais entre homens e mulheres e entre diferentes profissões e ofícios

O avanço técnico, em escala mundial, está sendo detido pelo sistema de salários. Há uma crescente contradição entre as relações sociais do capitalismo e o potencial das novas forças produtivas. A nova tecnologia da informação permite uma transição direta para o modo de cálculo comunista. As novas relações de produção comunistas abolirão as diferenças de classe e permitirão retomar o progresso técnico e humanitário.

Referencias:

[1] Nikola Bukharin. ABC of Communism.
[2] Paul Cockshott and Allin Cottrell. Labour value and socialist economic calculation. Economy and Society, 18(1):71-99, 1989.

[3] Paul Cockshott and Karen Renaud. Extending handivote to handle digital economic decisions. In Proceedings of the 2010 ACM-BCS Visions of Computer Science Conference, page 5. British Computer Society, 2010.

[4] W Paul Cockshott and Allin Cottrell. Economic planning, computers and labor values. conference Karl Marx and the Challenges of the 21st Century, Havana, Cuba, May, pages 5-8, 1999.

[5] W Paul Cockshott and Allin F Cottrell. Information and economics: a critique of Hayek. Research in Political Economy, 16:177-202, 1997.

[6] W Paul Cockshott and Allin F Cottrell. Value, markets and socialism. Science & Society, pages 330-357, 1997.

[7] WP Cockshott and K. Renaud. HandiVote: simple, anonymous, and auditable electronic voting. Journal of information Technology and Politics, 6(1):60-80, 2009.

[8] Allin Cottrell, Paul Cockshott, and Greg Michaelson. Is economic planning hypercomputational? The argument from Cantor diagonalisation. School of Mathematical and Computer Sciences (MACS), Heriot-Watt University Edinburgh, available at: www. macs. hw. ac. uk/ greg/publications/ccm. IJUC07. pdf (accessed December 10, 2008), 2007.

[9] Allin Cottrell, WP Cockshott, and Greg Michaelson. Cantor diagononlalisation and planning. Journal of Unconventional Computing, 5(3-4):223-236, 2009.

[10] Karl Kautsky. The social revolution. CH Kerr, 1902.

[11]Marx, K. (1847). Miséria da Filosofia . Fonte: Marxists.org: https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm

[12]Marx, K. (Janeiro de 1859). Para a Crítica da Economia Política. Fonte: Marxists.org: https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm

[13] Karl Marx e Friederick Engels. Manifesto do partido comunista, https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm.

[14] Bertram Patrick Pockney. Soviet statistics since 1950. Aldershot (UK) Dartmouth, 1991.

[15] Karen Renaud and WP Cockshott. Electronic plebiscites. 2007.

[16] KV Renaud and WP Cockshott. Handivote: Checks, balances and threat analysis. Submitted for Review, 2009.

[17] M. Salvadori. Karl Kautsky and the socialist revolution, 1880-1938. Verso Books, 1990.

[18] Joseph Stalin. Economic Problems of Socialism in the USSR. Moscow, 1952.

[19]Stálin, J. V. (Setembro de 1945). Sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico. Fonte: Marxists.org: https://www.marxists.org/portugues/stalin/1938/09/mat-dia-hist.htm