“Por que a teoria do valor-trabalho é verdadeira?”, por Ian Wright

Tradução de Gabriel Carvalho.

Original em inglês no site Dark Marxism.

Moeda da Alemanha Oriental de comemoração de 20 anos da fundação da República Democrática Alemã.

Como qualquer pessoa educada sabe — a teoria do valor-trabalho é falsa. De fato, uma marca da educação superior, seja em economia, ou não, é uma crença na certeza dessa proposição.

Ainda assim, se perguntar a uma pessoa educada, “a questão do valor”: “Qual a medida ou representação de um dólar ou uma libra?” você provavelmente irá ouvir alguns minutos de divagações e balbucios.

Todos sabem que as marcas em uma régua medem distância, ou que as colunas num termômetro de mercúrio medem temperatura, ou que os braços de um relógio representam o tempo. E mentes curiosos, antes de serem ensinadas a parar de se preocupar com essas coisas, naturalmente perguntam a questão do valor e indagam sobre a natureza dos números que eles veem estampadas nos bens que elas compram, e os símbolos que carregam em seus bolsos. Mas, diferente das réguas, termômetros e relógios, poucos adultos tem uma ideia clara e distinta da semântica do fenômeno monetário, inclusive os economistas.

As respostas possíveis à questão do valor incluem “algo específico”, “muitas coisas” ou “nada”. A história do pensamento econômico explorou todas essas opções.

No entanto, a atitude predominante entre os economistas, hoje, é o niilismo do valor. “Só o que existe é o preço” é procurar algo por trás dos preços, ir mais a fundo, é simplesmente um tipo de essencialismo confuso. Consequentemente, perguntar a um economista moderno a questão do valor é como levantar a questão do flogisto para um físico moderno. É anacrônico. A ciência econômica, uma vez se ocupou da questão do valor, mas, subsequentemente, se disciplinou a parar de perguntá-la.

A academia, ao menos nas sociedades capitalistas, voltou-se contra a teoria clássica do valor-trabalho durante a revolução marginalista da economia no século XIX. Ulteriormente, a teoria do valor subsistiu na periferia da academia, enquanto teve robusto e contínuo apoio de uma pequena minoria de intelectuais associados com a tradição socialista no interior da sociedade civil.

Mas mesmo uma academia resolutamente pró-capitalista, como a que temos hoje, deve aparentar conformidade às normas científicas. Então, quais razões são normalmente dadas para rejeitar a teoria do valor-trabalho?

Simplificando, a academia normalmente oferece duas razões principais: uma exotérica, e outra esotérica.

A razão exotérica é a de que os preços de mercado são determinados pela tesoura da oferta e demanda de Marshall. Então os preços são índices de escassez e, portanto, não podem representar a medida de tempo trabalho necessário à produção de uma mercadoria. Esse tipo de argumento frequentemente aparece na rejeição popular da teoria do valor-trabalho.

A razão esotérica é a de que a teoria da transformação, de Marx, não funciona. Que teoria é essa? Marx entendia que os preços de equilíbrio (opostos aos do mercado) das mercadorias divergiam sistematicamente do tempo de valor necessário à sua produção. De forma que a teoria do valor trabalho parece falsa na superfície empírica da sociedade capitalista. Ainda assim, Marx defende que essa divergência é meramente aparente e causada por efeito de distorção das propriedades das relações capitalistas. Em suas notas incompletas, publicadas como o volume 3 d’O Capital, ele propunha que preços transformações conservadoras do tempo de trabalho (isto é, preços são expressões “transformadas” do tempo de trabalho). Então, embora os preços das mercadorias individuais e os tempos de trabalho divirjam, há uma relação de um-para-um entre os preços e os tempos de trabalho agregados.

O pai da economia neoclássica, Paul Samuelson, publicou artigos na década de 50 e 70 que, embora não originais, demonstram em termos matemáticos que a teoria da transformação de Marx não pode funcionar e, portanto, não há uma relação de um-para-um entre preços de equilíbrio e tempo de trabalho.

Críticos pouco sofisticados da teoria do trabalho oferecerão a razão exotérica, mas críticos mais sofisticados sabem que a objeção da escassez não se sustenta. Então, os críticos sofisticados, no fim das contas, valem-se do problema da transformação de Marx.

Mas, eis o obstáculo. Os críticos tem um ponto. A teoria da transformação de Marx é, de fato, incompleta e tem seus problemas – uma característica que o próprio Marx destacou em suas anotações.

De um ponto de vista sociológica, e muito simplificado, temos, por um lado, uma academia pró-capitalista ansiosa para extirpar a teoria do valor-trabalho, e todas suas implicações radicais, da discussão acadêmica; e, por outro lado, uma periferia pró-marxista motivada a defender a teoria contra ataques ideológicos das elites dominantes. O ambiente para buscar a ciência da teoria do valor, decididamente, insalubre. Mas não poderia ser diferente.

Uma tendência lamentável nos círculos marxistas, que representam um verdadeiro obstáculo ao progresso material, é a de “driblar” o problema da transformação através de uma reinterpretação criativa do significado dos textos de Marx. Muitas reinterpretações tentam salvar Marx, apenas desmantelando o conteúdo científico d’O Capital. Por exemplo, uma grande família de reinterpretações termina por negar que o tempo de trabalho é uma propriedade da realidade independente do mercado. Grande materialismo!

Então, por que a teoria do valor-trabalho é verdadeira? Darei uma resposta breve e técnica neste novo artigo com a minha posição:

A Teoria Geral do Valor Trabalho (tradução em breve)

Alguns dos argumentos principais são:

  • A teoria clássica do valor trabalho é um caso particular de uma teoria mais geral.
  • A teoria geral:
    • Dissolve o problema da transformação de uma maneira natural e transparente,
    • Preserva a teoria da exploração e mais-valor de Marx,
    • Demonstra que os preços de equilíbrio e tempo de trabalho são duais entre si (isto é um teorema) e,
    • revela como a dinâmica da competição capitalista fundamenta uma relação de legalidade entre preços de escassez e tempo de trabalho (isto é, reconstrói a “lei do valor” de Marx).
  • Consequentemente, a teoria geral estabelece a base lógica para a resposta do “tempo de trabalho” à questão do valor.

A atitude niilista moderna não representa uma rejeição sofisticada de teorias do valor de substância ingênua, mas, ao invés disso, significa a continuada existência de problemas teóricos não-resolvidos e fundamentais que se manifestam, primeiro, com o nascimento da ciência econômica moderna nos séculos 18 e 19.

Não há estrada real para a ciência. E a infeliz verdade para a academia pró-capitalista é a de que a estrada para a compreensão científica da economia passa por Marx. Não há como evitá-lo, pois, de todos os pensadores econômicos, ele foi o único a acertar os fundamentos da teoria do valor. E cada escola moderna de pensamento econômico, seja ortodoxa ou heterodoxa, lamentavelmente ignora o que significa unidade de conta. Somos como formigas cegas obcecadas, sorvendo e trocando a substância da rainha, sem saber nada sobre a sua verdadeira função. Marx está à frente, na estrada, apontando a direção para a verdadeira compreensão científica do tipo de sociedade em que vivemos. Isto explica porque essa postagem é ilustrada com uma imagem de uma moeda com a rosto de Marx gravado nela.

Uma crise de reciprocidade no paleolítico: símbolos, sinais e normas, por Kim Sterelny

Tradução de Gabriel Carvalho.

Este artigo foi publicado em 14 de Janeiro de 2014, na edição 9 da revista Biological Theory, da MIT Press.

No interior da paleoantropologia, a origem da modernidade comportamental é um problema famoso. Hominídeos com cérebros grandes existem há 500 mil anos, mas vidas sociais semelhantes às reconhecidas no registro etnográfico apareceram talvez há 100 mil anos. Por que levou 400 mil anos para os humanos começarem a agir como humanos? Neste artigo, defendo que parte da solução é a transição nos fundamentos econômicos da cooperação, de uma forma relativamente pouco exigente, para uma que impôs muito mais estresse sobre os mecanismos motivacionais e cognitivos dos humanos. As ricas vidas normativas, cerimoniais e ideológicas dos humanos são uma resposta à revolução econômica nas vidas de caçadores-coletores; de uma que dependia do mutualismo de retorno imediato para outra dependente de reciprocidade atrasada e de terceiros.

Palavras-chave: Modernidade comportamental, Evolução das normas, Economia de caçadores-coletores, Cooperação humana e mutualismo, Cooperação humana e reciprocidade, Comportamento humano simbólico.

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Kim Sterelny, professor de filosofia na escola de pesquisa em ciências sociais da Universidade Nacional Australiana e na Universidade Victoria de Wellington.

CAMINHOS DE PAULO FREIRE

Entrevista dada a

J. CHASIN,

RUI GOMES DANTAS

VICENTE MADEIRA

REVISTA ENSAIO – Filosofia/Política/Ciência da História, nº 14, 1985.

Entrevista

Foi uma conversa. Longa conversa de horas. Calorosa e produtiva. Contudo, não pode ser dito que se tratou de um papo curtido de velhos amigos. Seria impróprio de duas maneira. Primeiro, porque não foi um taramelar sem destino; segundo, porque irreal e pretensioso: a maioria dos interlocutores encontrava e dialogou com o entrevistado pela primeira vez.

Até mesmo por isso, como homenagem ao “primeiro encontro”, foi dispensada a polêmica e o lado enfatizado recaiu sobre o depoimento. Outro modo de fazer a já característica Entrevista de Capa da ENSAIO.

Janeiro findava e, como é peculiar à sua rotina, Paulo Freire estava entre um retorno e uma partida: voltava de um curso no interior paraibano e estava às vésperas de saldar um compromisso no exterior.

É a dinâmica geográfica de seus caminhos, as outras o papo revela, pelo menos em parte. E com o sabor do gesto e da tônica por ele ciosamente preservados e cultivados, e que, parece, década e meia de exílio só fez acentuar. Gesto e tônica que melhor não poderiam ser traduzidos com carinho do que pela fórmula que as identifica como dimensões de um verdadeiro profeta do sertão internacional.

A malha de seus caminhos, não por culpa sua, tem desnorteado não poucos de seus adeptos e outro tanto de seus críticos. E muitos passaram a ter ou a rejeitar o Paulo Freire que lhes convém.

Gostaríamos de pensar que este colóquio possa ser uma contribuição, por modesta que seja, aos adeptos e críticos que não se satisfazem, a não ser com a autêntica personalidade, política e intelectual, daquele que nos honrou e proporcionou grande satisfação ao atender o convite para esta entrevista.

J. Chasin – É obviamente desnecessário fazer sua apresentação. Há largo conhecimento de sua figura e de seu trabalho. Contudo, sempre há o perigo do conhecimento fracionado, e o Brasil é especialista em “fracionar” pessoas, Então, eu começaria com algo muito simples, mas muito importante, especialmente para você mesmo e, sem dúvida, para a curiosidade do leitor: onde você nasceu e como é que foram esses tempos todos da infância, da juventude?

P. Freire – Eu acho uma boa pergunta para a gente começar. Eu nasci, relativamente perto da tua casa. Nós aqui estamos na praia do Cabo Branco em J. Pessoa e eu nasci, a uma centena de quilômetros, no Bairro de Casa Amarela, Recife, em 1921. Como agora, sempre que venho para o Nordeste, para Recife, passo em frente à casa onde nasci, que continua de pé, do mesmo jeito. É que houve um certo litígio, em torno da casa ou do terreno, algo assim, o que acabou por preservá-la. Senão já teria sido derrubada e no seu lugar haveria um prédio de apartamentos. Esta casa fica à Rua do Encanamento, 724. Dali eu saí com minha família, ou melhor fui saído… Eu costumo dizer, depois da minha experiência de exilado, que meu primeiro exílio não foi depois de 64, mas foi em 32, quando a minha família, em face da crise de 29, fugia do Recife e aí nós fomos morar numa cidadezinha próxima – na época uma viagem até chegar lá, 18 Km – , que se chama Jaboatão. Essa saída foi traumática porque havia toda uma convivência entre o menino e aquele seu primeiro mundo, aquele chão, o canto dos passarinhos. Foi uma saída tática, mas a crise continuou nos acompanhando em Jaboatão.

J. Chasin – Essa crise, concretamente, como foi no interior de sua família?

P. Freire – Meu pai, Temístocles Freire, cuja presença me marca até hoje, morreu em 34. Rio-grandense-do-norte, era capitão da polícia militar, tendo sido inicialmente sargento do Exército. Quando eu nasci, ou pouco depois, ele ficou muito doente e teve que se reformar. Os vencimentos dele, na época, eram bastante limitados. Havia, no entanto, um tio nosso, irmão da minha mãe, um comerciante que tinha casa de estivas no Rio de Janeiro, que ajudava a família. Com a crise de 29, que repercutiu dramaticamente em cima dele, teve que diminuir a ajuda que dava. Foi por isso que se perdeu a casa onde nasci, era dele e ele a perdeu, quando entrou em concordata. Isso pelo menos é o que minha memória registra. Seu nome era Rodovalho Neves. Foi, inclusive, um dos poetas pernambucanos conhecidos por seus poemas de cunho pessimista, negócio bem do tempo. Assim, a situação ficou muito difícil para nós sem a ajuda que ele dava antes, pois éramos 5 filhos e mais a minha avó. Mas, em Jaboatão eu tive algumas experiências que me foram muito importantes. Lá eu tive minhas primeiras aventuras, edílios…

J. Chasin – Você se lembra da primeira namorada?

P. Freire – Olha, engraçado, em matéria de namorada…

J. Chasin – Se não lembra, não faz mal. Não interessa o nome…

P. Freire – Não, não. Interessa, eu vou te contar. A primeira experiência, talvez, assim, de uma coisa estranha entre mim e outra pessoa tenha se dado com uma menina, num cineminha, quando nós tínhamos possivelmente 5 ou 6 anos, se a minha memória não está me traindo, inventando coisas… Eu me lembro dessa menina com quem me encontrava, mediado por uma cerca de pé de pitanga…

J. Chasin – Tá bonito…

P. Freire – Não sei se estarão aí todas as razões porque eu sou apaixonado por pitanga até hoje. O seu nome eu não me lembro mais, mas me lembro claramente dessa experiência. Mas, logo em seguida, eu já com os meus 8 ou 9 anos, uma outra menina veio morar na mesma casa onde morava a primeira. E eu, garotão, tinha uma paixão enorme por essa outra menina que, coincidentemente, tinha o mesmo nome que a minha mulher – Elza. Mas ela nunca soube da minha paixão. Íamos juntos à escola, ela era uma menina graúda, alta. Toda noite eu fazia os meus planos de como é que eu ia me declarar. Me lembro, me lembro que havia sempre em mim frases já estabelecidas, com as quais eu começaria a minha declaração de amor. Eu prometia a mim mesmo que, no dia seguinte, eu diria a ela: “Elza, você é bonita!” E nunca disse.

V. Madeira – Eu gostaria de fazer uma pergunta sobre essa fase de sua vida que, talvez, ajude a entender melhor a sua obra. Nesta, além de um tom pedagógico, há um tom presbiteral, no sentido genuíno do termo grego – irmão mais velho. E isso pode estar ligado a uma coisa que, nas famílias do Nordeste, era muito atribuída à vocação sacerdotal. Havia esse apelo, que a dificuldade econômica das famílias aumentava, na medida em que a Igreja oferecia uma série de facilidades para a formação eclesiástica. Tudo isso favorecia ao florescimento dessas vocações. Como você “transou” na sua infância, na sua adolescência este apelo?

P. Freire – Interessante, Vicente. Conversando com D. José, recentemente, eu contava a ele que, quando eu era menino, meus pais perguntavam: “meu filhinho, o que você quer ser quando for homem?” E as perguntas são sempre feitas aos homens, é o marco machista da nossa cultura. Mas, eu me lembro, quando meus pais faziam esta pergunta e antecipavam algumas hipóteses – “você gostaria de ser médico? engenheiro? isso ou aquilo?”, eu admitia sempre que cada uma dessas hipóteses era provável. Mas se, de repente, me perguntavam se eu queria ser padre (isso me foi contado pela minha mãe), eu dava quase um salto e dizia um não bem grande. E se perguntavam: “porquê?” Eu dizia, “porque não casa!”

J. Chasin – E o que era o casamento para você nesta fase?

P. Freire – Para responder a essa pergunta, corre-se o risco de presentificar. Mas esta sempre se dá e, às vezes, termina tomando conta do passado, de uma tal maneira que você recusa o que foi ou o que deveria ser, em função da sua presentificação. Eu observo que muitas críticas, que me fazem, chegam a esse exagero de presentificar e esquecer de 1963, esquecer o que houve em 63, e querer que em 63 eu tivesse o procedimento que as pessoas, que me criticam, hoje teriam e gostariam de ter. Então, eu não quero fazer o mesmo com a sua pergunta. Mas, a impressão que eu tenho é que para mim, substancialmente, casamento era a possibilidade de estar com uma mulher.

J. Chasin – Mas havia já no menino, na criança, essa dimensão que o rapaz e o homem viriam a vivenciar, digamos, a sensibilidade do que tudo isso representa?

P. Freire – Olha, eu não quero ser muito categórico, mas acho que havia, e possivelmente porque isso tinha a ver um pouco com uma experiência muito própria, muito específica que eu vivia. A de ter um pai muito próximo de mim, presente, porque aposentado, em função de um aneurisma no abdômen. Na época não havia as soluções cirúrgicas de hoje. Então ele ficava muito dentro de casa e tinha um relacionamento extraordinário com minha mãe. Então, o modelo me deve ter marcado. Para vocês verem como isso me marcava, um dia eu apenas pressenti que os dois estavam arengados e isso me deu insegurança. É como se tivesse começado a rachar o chão num terremoto, e eles perceberam e foram afetivos comigo. Depois, devem ter resolvido o problema legítimo da arenga, ou melhor, devem ter resolvido a arenga legítima. Afinal de contas, dizendo isso, eu não estou sugerindo aos pais jovens, prováveis leitores desse papo nosso, que não arenguem nunca, porque isso é falso. Pelo contrário, eu estou sugerindo que arenguem mesmo, se há razão de arengar, porque o conflito dos dois pode partejar a consciência do filho. Não há porque fugir do conflito.

J. Chasin – Nem escondê-lo.

P. Freire – nem escondê-lo de maneira nenhuma. O que eu quis foi sublinhar o clima de estabilidade que eu vivi e que não é muito generalizado.

V. Madeira – Eu jamais esperaria que você tivesse sido filho de um militar. É muito possível que outra característica de seu pai fosse um perfil pouco identificado com a rigidez da disciplina.

P. Freire – Eu não sei se vou ser justo com meu pai, ou se vou exagerar o profundo querer bem que me marca ainda hoje, depois de 50 anos da morte dele. Mas ele viveu intensamente a tensão entre a autoridade dele e a liberdade dos filhos. O testemunho que ele deu a nós (às vezes eu converso com meus irmãos sobre isso) foi o de quem viveu muito bem essa tensão.

V. Madeira – Vocês eram quantos?

P. Freire – Éramos quatro filhos, três homens e uma mulher. E eu era o mais novo.

V. Madeira – Por que você tem o nome Reglus? Por que Paulo Reglus Freire?

P. Freire – Taí uma pergunta que nós teríamos que fazer a meu pai.

V. Madeira – Eu sempre vi uma ligação disso com a África.

P. Freire – Olha, eu não sei. Pode ser um pouco de autoritarismo, em função da autoridade do Régulo, não? Não sei, por outro lado, até que ponto foi uma extravagância do meu pai, ou quando foi me registrar pronunciou Régulo e o cara do cartório, que nunca ouviu falar nisso, escreveu Reglus. Bem, essa seria a resposta que eu te daria. Isso ficou me marcando nos documentos oficiais. Ninguém me conhece por Reglus e eu não escrevo nunca isso, a não ser quando tenho que escrever meu nome inteirinho.

J. Chasin – Mas, esta sua casa da infância, era então gostosa, agradável, afetivamente respaldante…

P. Freire – A casa da gente era, num sentido largo, isso que tu disseste, mesmo quando, em muitas oportunidades, a gente começava o dia sem muita certeza…

J. Chasin – … que ia comer.

P. Freire – Mesmo assim, gostaria de sublinhar, em primeiro lugar, aos prováveis leitores desse papo que, ao me referir a isso, não estou procurando, de maneira nenhuma, como é que eu diria, arranjar um título para mim, um título de quem quando criança sofreu. Eu não estou querendo com isso dar nenhum cartão de visita de menino faminto ontem e grande revolucionário hoje. Nada disso, meu Deus do céu! Tenho, inclusive, que me cuidar melhor com essa palavra – revolucionário. Um baita respeito a isso! E, em segundo lugar, também não gostaria de dar a impressão de que vivi uma infância demasiado dramática. Sobretudo quando a gente conhece esse Nordeste, quando a gente vê uma quantidade crescente de crianças que não comeram, não comem e não sabem quando vão comer. A dureza da minha infância, perto dessas crianças, é um fim de semana em Tambú. Esse passado foi um acidente que se deu na família, considerando a posição de classe dela.

V. Madeira – Você estudou em escola pública…

P. Freire – Eu fiz a escola primária exatamente no período mais duro da fome. Não da “fome” repito intensa, mas de uma fome suficiente para atrapalhar o aprendizado. Agora, quando terminei meu exame de admissão, era alto, grande, anguloso, feio. Já tinha esse tamanho e pesava 47, 48 quilos. Usava calças curtas, porque minha mãe não tinha condições de comprar calça comprida. E as calças curtas, enormes, sublinhavam a altura do adolescente. Eu consegui fazer, Deus sabe como, o primeiro ano de ginásio com 16 anos. Idade com que os meus colegas de geração, cujos pais tinham dinheiro, já estavam entrando na faculdade. Fiz esse primeiro ano de ginásio num desses colégios privados, em Recife; em Jaboatão só havia escola primária. Mas, minha mãe não tinha condições de continuar pagando a mensalidade e, então, foi uma verdadeira maratona para conseguir um colégio que me recebesse com uma bolsa de estudos. Finalmente ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz e o dono desse colégio, Aluísio Araújo, que fora antes seminarista, casado com uma senhora extraordinária, a quem eu quero um imenso bem, resolveu atender o pedido de minha mãe. Eu me lembro que ela chegou em casa radiantíssima e disse: “Olha, a única exigência que o Dr. Aluísio fez é que você fosse estudioso”. Eu, poxa, eu gostava muito de estudar e fui então para o Colégio Oswaldo Cruz, onde me tornei, mais adiante, professor. Aluísio Araújo já morreu, mas Elza e eu tivemos a grande satisfação de recebê-lo e à mulher, durante 15 dias, em nossa casa em Genebra, em 1977. E, em 1979, depois de quase 16 anos de exílio, quando viemos visitar o Brasil, estavam os dois, Aluísio e Genovive, no aeroporto em Recife, nos esperando. Ele já bem acabado, velhinho, e jantamos juntos depois. Na nossa volta para Genebra ele faleceu. E eu não tenho dúvida de dizer aqui, nesta entrevista, que se não fossem eles possivelmente esta entrevista não estaria sendo realizada. Foram eles que criaram as condições para o meu desenvolvimento… É evidente que eles não poderiam ter me fabricado, as pessoas não são fabricadas, mas a dimensão de minha experiência individual tem a ver muito com eles.

J. Chasin – Eles ensinavam?

P. Freire – Ele ensinava latim e português e ela ajudava-o na administração do colégio, mas não ensinava. Ele era, ao mesmo tempo, um homem rigoroso e afetivo. Às vezes, eu acho, que ele fiscalizava demasiado a sua afetividade, como se ele tivesse medo de querer bem.

J. Chasin – A primeira atividade que você exercitou foi a de professor de língua portuguesa?

P. Freire – Sim e acho que isso tem muito a ver com minha formação toda, com a minha preocupação com o problema da linguagem.

V. Madeira – Sua graduação foi em Letras?

P. Freire – Não, não. A minha graduação foi em Direito. Só não foi em Letras porque não havia Faculdade de Filosofia. Porque a coisa está dentro de um certo gosto que tenho de manusear, de manejar, de tratar a linguagem. Daí uma grande preocupação com a sintaxe popular, com a questão da semântica popular, com a questão da ideologia, com a questão da linguagem e classes sociais. Mas isto tudo já estava mais ou menos embutido, sem explicitação, já na minha adolescência. Eu me lembro de que andei, aos 19 anos, lendo Saussure, Vossler, Matoso, Câmara. Para estudar linguística, eu teria que ter ido para São Paulo. E eu não tinha condição de ir. Na época, eu tinha que trabalhar, já dava minhas aulas de português para ajudar em casa. Mas se eu tivesse ido naquela época para São Paulo, eu sei que minha mãe, meus irmãos aguentavam e eu me virava por São Paulo e faria o curso lá. Mas, acontece que fazer isto, naquela época, teria significado uma opção: a opção de não casar. Eu sempre dizia, em primeiro lugar, mesmo na mocidade, que casamento não atrapalha a formação científica de ninguém e, em segundo lugar, se atrapalhar, eu opto pelo casamento.

J. Chasin – Aprofunda isso!

P. Freire – Eu nunca entendi que casar significasse preocupação demasiada para sustentar uma família, porque já achava, na época, que a família não é sustentada exclusivamente pelo marido, mas a mulher também trabalha, a mulher realiza. Eu nunca entendi também que o fato de ter um filho, uma filha te tirasse do estudo. Um filho, uma filha tiram do estudo, possivelmente, menos do que a televisão ou uma excelente pinga. Mas aí meu raciocínio era o seguinte: admitamos, porém, que o casamento pode vir a atrapalhar a tua formação. Então deixa a tua formação científica em casa. Vê como isso coincide com a resposta que eu dei, aos 5 anos de idade, quando me perguntaram se eu queria ser padre e eu dizia que não, porque não casa. Quer dizer, eu sempre pus o estar com a minha mulher, viver com minha mulher, eu sempre pus isso não como o dono dela, mas o de participar com ela da criação, isso a gente vai saber depois, de um pedaço de mundo.

J. Chasin – Uma espécie de experiência matrizadora, fundante, sem a qual a vivência de toda uma existência ficaria mais pobre, caso não ocorresse. É algo neste sentido?

P. Freire – Exato. Tu formulaste agora muito melhor do que eu. Tu disseste o que eu gostaria de ter dito. É isso, é isso. Quando eu dou uma olhadela na minha vida, apesar das coisas que eu não fiz, porque não soube fazer, puxa rapaz! Mas eu não estou triste, me casei, ganho menos que a Elza…

J. Chasin – E não teve nenhum drama de novela…

P. Freire – Não foi uma novela de maneira nenhuma. Ainda hoje anda havendo aí problemas, porque o marido ganha menos que a mulher e se dá o diabo dentro de casa. Isso é um absurdo! Tu sabes que essa é uma das coisas contra as quais, nós homens desta região, precisamos lutar. Nós precisamos começar a dizer à geração jovem que é necessário combater essa expressão do autoritarismo dessa sociedade, que é o machismo. Nós não podemos, como homens, não podemos tomar a bandeira na briga das mulheres, porque seria uma forma sutil de continuar macho. Mas nós temos, nós temos é que apoiá-las nessa briga. E tem mais, e temos que entender que, inclusive nos momentos primeiros dessa briga, elas correm também o risco de serem ingênuas, e todos os que brigaram no primeiro momento correram o risco da ingenuidade.

J. Chasin – E de fazer bobagem…

P. Freire – Isso. De fazer bobagem. Mas é um direito de quem briga. E o que é que nós homens fazemos quando elas, quando as mulheres na sua luta fazem alguma bobagem? Nós ridicularizamos e continuamos a ser machistas.

J. Chasin – Você já referiu várias vezes a questão do machismo, de ser macho… Eu pediria que você alongasse sobre isso. Que é machismo?

P. Freire – Eu acho que o machismo, como já disse, é uma das expressões do autoritarismo, que na sociedade brasileira permeia as classes sociais. São quase 485 anos… Outro dia, há dois meses atrás, um jornalista da BBC de Londres, passando pelo Brasil, foi a São Paulo e me pediu uma entrevista. E certamente ele riu muito, porque me perguntou o que é que eu achava, qual era a minha opinião em face desses 20 anos de autoritarismo no Brasil? Eu disse, olha, eu acho que a formulação da pergunta não está muito correta: é em face desses 485 anos. Porque o golpe de estado brasileiro, na verdade, não inventou nem inaugurou o autoritarismo no Brasil. Agora, uma coisa que ele fez, e que a história está registrando e reconhecendo, é sustentar o sistema capitalista, dando uma contribuição extraordinária. Essa contribuição não vai ser esquecida na história.

Acho que o machismo no primeiro momento é isso, quer dizer, é uma expressão, é um momento, é um aspecto desse autoritarismo. Em segundo lugar, é uma atitude, implica uma atitude, um comportamento, uma ideologia autoritária de discriminação do outro sexo em favor do masculino. E vê bem, o machismo existe inclusive quando o homem é dominado pela mulher. É apenas uma experiência ao contrário, porque do ponto de vista social ela pode mandar no marido, mas ela continua oprimida, ela continua diminuída. Evidentemente, é uma bobagem pretender fazer uma análise de classe aí, e considerar mulher como classe, não dá. Seria uma bobagem. Mas, do ponto de vista da superação do machismo, eu teria dificuldade de entender a questão sexual e a tensão que está envolvida, no machismo, fora de uma compreensão das classe sociais. Como conclusão, em primeiro lugar, para mim, no sistema capitalista é inviável a superação disso. Segundo, só no sistema socialista se dá a única possibilidade de superar a tensão sexual e a tensão racial; só, porém, se os revolucionários resolverem também assumir essa briga. Entende? Quer dizer, a reorientação da economia, do ato produtivo em si, pra mim, não basta para acabar com isso, porque há uma dimensão mais além disso, ao lado disso, omitida nisso, embutida nisso, que é profundamente ideológica e que não muda automaticamente com a mudança do modo de produção.

V. Madeira – Houve um momento em que você colocou a questão do nosso machismo regional. Será que nisso você não é vítima de um preconceito nosso sobre nós mesmos, nordestinos?

P. Freire – Eu sublinhei que eu acho que o machismo entre nós é de tal maneira arrogante, é de tal maneira contundente, que a gente precisa sublinhá-lo constantemente. Eu me lembro agora, por exemplo, de uma grande página de Engels em que ele diz: Marx e eu tivemos durante muito tempo de enfatizar a prevalência do econômico exatamente por que ele vinha sendo de tal maneira negado, que era preciso sublinhar enfaticamente para que se começasse, afinal de contas, a perceber o seu papel. Mas, diz ele, nunca foi intenção nossa negar o papel da superestrutura. Bem, é meio cabotino até que apele para tal exemplo para explicar a minha posição aqui. De modo nenhum eu queria reduzir o machismo apenas ao Nordeste. O machismo não é nem só brasileiro! Puxa, ele existe no mundo todo! Agora, sublinhei a nós, sublinhei a questão para nós do Nordeste onde essa coisa é terrível. Você imagina, hoje está um pouco melhor, já, mas no meu tempo aqui antes de sair, antes de ter saído do Recife, era comum, por exemplo, que o marido ficasse em casa à noite, ele numa poltrona, com o seu cigarro e olhando a televisão e de repente dissesse “Sílvia, minha filha”, manhosamente, maciamente, “minha filha, vem cá”. E ela vem e ele dizia: “olha, muda o canal”. E ela vai até o canal e muda o canal do dois pro quatro, do quatro pro seis, e ele “tá ótimo, minha filha e fica cá”. Daqui a pouco ela vai embora, fazer qualquer coisa e ele diz, “Silvinha querida” e ela “que é querido?”, e ele então “faz o café”. Faz o café e o cara depois pede um copo de água. Quer dizer, de modo geral, no machismo, o homem não forra a cama em que faz amor com a sua mulher, não lava o banheiro em que toma banho com a sua mulher, não varre a casa que suja ao entrar! Quando tudo isso não é feito por ela, é feito por uma empregada a quem não se paga praticamente nada. Quer dizer, é aí, é nesse sentido que eu dei a impressão de ter privilegiado o Nordeste…

J. Chasin – Em suma, quais foram as experiências fundamentais desse período? Seja a nível do ensinar, do aprender, do “desaprender”, o que ocorreu de decisivo nesses anos?

P. Freire – Eu tive uma porção de coisas assim importantes nesse período, muito importantes. Por exemplo, uma delas, extraordinariamente importante, foi ser encontrado pela Elza e encontrá-la, numa dessas esquinas do mundo, não é? A gente fez agora 40 anos, em novembro do ano passado, e temos 7 netos, deveríamos até ter mais, não é? E temos 5 filhos, deveríamos ter tido 12, a Elza perdeu… também já pensaste, 12 no exílio, deve ser… Nessa época, tive também a oportunidade de encontrar ótimos professores.

J. Chasin – Você se lembra de alguns?

P. Freire – Antes da universidade, apesar de ser perigoso sugerir alguns nomes, porque podes magoar alguém, eu citaria o Prof. Marcílio de língua portuguesa. Um outro cara, que me marcou intensamente, foi Amaro Quintas. Ele era um extraordinário contador de histórias. Mas, além disso, ele era um pesquisador, quer dizer, ele não era apenas um excelente professor de história. Sim, eu me lembro das aulas dele, ele jovem ainda. Até hoje continuo chamando-o de Dr. Amaro, de Prof. Amaro, e ele protesta, mas eu sempre o chamo assim. Mas eu me lembro, sim, como me lembro. As aulas dele eram tão boas que corriam o risco de ficarem ruins. Porque nas aulas de Amaro tu vivias um fenômeno que é meio perigoso: a empatia. Em certo momento, ele conseguia me arrancar da cadeira de aluno e me meter no enredo da história, que ele contava apaixonadamente. Tu poderias dizer: “bom, mas isso não é nada ruim”. E eu digo que o ruim disso está exatamente em que tu podes ficar muito mais apaixonado do que crítico. Se bem que para mim toda postura crítica envolva um pouco de paixão. Bem, Amaro Quintas me impressionava muito. Um outro professor, que me marcou muito também, foi o Prof. José Cardoso, hoje um grande industrial em Sorocaba. Ele pode até divergir muito de mim, mas foi um excelente professor. Um outro professor de que lembro, e que já morreu, é o de matemática: eu sempre passava no “canto do pau”, na “rapa”. Mas em história, com Amaro Quintas, eu sempre tirava boas notas; em português, em francês, em inglês também.

Mas, o que eu gostaria de te dizer, como centro da minha resposta, é que num certo momento da minha vida, um pouco antes do curso pré, no finzinho do 5º ano do ginásio da época, o que mais me tocou foi descobrir, – depois que eu comecei a comer, a comer mais e mais, em função da contribuição dos irmãos mais velhos, que começavam a trabalhar, – que eu não era tão burro quanto eu pensava. Tu nem podes bem imaginar com que emoção, quase chorando, eu comecei a perceber que entendia, que eu podia entender as coisas que estudava. Deu um estouro dentro de mim, eu lia, lia e estudava. E coincidia que eu começava também a dar as minhas aulinhas de língua portuguesa. Eu me lembro, me lembro da amorosidade, da curiosidade com que eu lia, por exemplo, os Serões Gramaticais, o famoso livro de Ernesto Carneiro Ribeiro, as brigas de Ernesto com Rui Barbosa, A Réplica, A Tréplica. Eles brigavam muito por causa da redação do Código Civil Brasileiro. Um negócio! Obviamente, isto tudo para mim, hoje, não tem nenhum sentido…

J. Chasin – E a sensibilidade para o social, nasce também nessa época?

P. Freire – Não. Eu te diria que a sensibilidade para o social vem já da infância. Agora, ela vai tomando forma na medida em que eu vou me experimentando mais socialmente. Uma coisa que nem sempre é bem compreendida, lamentavelmente, é o Serviço Social da Indústria, o chamado SESI, que, ao nascer nos anos 40, revela um dos lúcidos momentos da liderança da classe dominante brasileira. Ele nasce não para desafiar a classe trabalhadora, no sentido dela superar a condição de classe em si e alcançar a de classe para si. Isso, obviamente, não se podia pedir jamais às classes dominantes, de país nenhum do mundo, que organizassem um serviço de caráter social, pedagógico, ou político-ideológico, através do qual se tentasse ajudar as classes trabalhadoras a alcançar consciência de classe. Pelo contrário, ele nasce fundamentalmente para dilatar no tempo, tanto quanto possível, fenômenos que hoje ocorrem independentemente da classe dominante.

J. Chasin – Surge para tentar a assimilação dos trabalhadores à sociedade estabelecida, que transitava para a industrialização.

P. Freire – Isso, nasce para isso. Mas é interessante e eu vou trabalhar lá…

V. Madeira – Foi seu primeiro emprego…

P. Freire – Foi meu primeiro emprego não como professor. Eu começo a trabalhar no Setor de Educação do SESI. O espaço político, social do SESI termina por me radicalizar, ou por começar a me propor a radicalização. Então vocês vejam como as coisas são interessantes. Se você observa, se você tem uma leitura da realidade, em termos mecanicistas, em termos de um mecanicismo zarolho, você não pode jamais entender a própria realidade, que é em si contraditória, rica, processual. E foi exatamente no corpo, na intimidade de uma instituição assistencial, que eu começo a encontrar ou a me reencontrar ou a reencontrar o Paulo menino, que tinha tido as suas primeiras experiências com meninos operários, camponeses etc., em Jaboatão, na minha adolescência. E aí, e aí eu começo a me aproximar da razão de ser do fenômeno da exploração de classe. Então, vocês vejam, uma leitura ingênua, mecanicista, da minha passagem pelo SESI não é capaz de entender isso. O SESI me ensinou pra burro. Eu te diria que as minhas primeiras experiências no SESI, no campo da educação popular, que levei mais de 10 anos sem comunicar, tem muito a ver com a formulação, que estala depois, na formulação desse “negócio”, que é chamado, não muito precisamente bem, de método Paulo Freire. Mas, sei lá, é esse o mérito, das minhas relações como Diretor da Divisão de Educação do SESI…

J. Chasin – Você já fez essa afirmação há muito tempo atrás…

P. Freire – Fiz, fiz…

J. Chasin – Lembro de ter lido essa sua afirmação. De que o “estalo” teria nascido exatamente dessa vivência. O SESI foi o lugar onde se deram as primeiras esfregadelas da cara na realidade?

P. Freire – Isso. Foi. Agora, evidentemente, a formulação foi posterior, já fora do SESI, mas sem o SESI não teria existido…

V. Madeira – Sem a fecundação…

P. Freire – Sem a fecundação do tempo. Mas isso é a história! Eu não sei como não entendem isso. É porque eu acho que tem gente que se especializou só em criticar. Não cria nada, sabe? Então, ao não criar, a não ser a crítica, o cara não entende esse fenômeno da criação que nós fazemos, não individualmente, mas socialmente.

J. Chasin – Durante esse trabalho, suponho que você andou fazendo certas leituras. Quais foram?

P. Freire – Hoje, eu me inclinaria, imediatamente, para leituras que só fiz depois, sobre problemas de ideologia das classes sociais. Dos mecanismos de introjeção da ideologia dominante pelo dominado; a tensão da relação dominado/dominante enquanto relação de classes sociais, e não apenas enquanto indivíduos. Na época, porém, você sabe para onde eu corri? Eu corri para estudos históricos, culturais, em torno da formação brasileira. Mas foi bom também. Claro!

J. Chasin – Deixa eu fazer uma pergunta, Oliveira Vianna entrou?

P. Freire – Mas claro!

J. Chasin – Não referindo, agora, às críticas necessárias a Gilberto, há que distinguir claramente Gilberto Freire de Oliveira Vianna, em especial o Gilberto de Casa Grande, deixando de lado por completo, no momento, o seu luso-tropicalismo posterior.

P. Freire – Não há dúvida, não há dúvida. Eu acho Gilberto Freire uma presença indiscutível, marcante, na história e na cultura desse país! A impressão que eu tenho, pode ser que esteja completamente errado, é que a obra de Gilberto Freire ainda vai ser estudada seriamente a nível universitário nesse país e não necessariamente para se concordar com ele.

J. Chasin – Seria, exatamente, para entender a gênese do “equívoco”, numa perspectiva de determinação social do pensamento?

P. Freire – Claro, tudo isso, mas também a presença dos acertos dele. Para mim, Gilberto está entre nós, e até o fim deste século ele vai ser um pensamento intensamente estudado.

J. Chasin – Vejo que você, ao mencionar Oliveira Vianna e Gilberto Freire, faz recair a ênfase sobre o segundo.

P. Freire – Ah! lógico. Mas, eu também não descarto um estudo sério, constante de Oliveira Vianna.

J. Chasin – Agora, provocadoramente: como é que você dimensiona e lida com o caráter conservador dos dois?

P. Freire – Olha, o que eu faria, e é o que tento fazer, é exatamente, não deixar que a gostosura do estilo de Gilberto mine a minha consciência crítica. Tá me entendendo? Porque se você lê Gilberto Freire, sem brigar com a beleza do seu estilo, você corre o risco de ficar vencido diante dele. Agora, eu me distanciei muito de Gilberto Freire, politicamente também. Depois de 20 anos, falei com ele no ano passado, na praça, ele veraneando e eu também. Achei que devia cumprimentá-lo. Nesse ponto, pode ser que muita gente não concorde comigo. Sou um pouco socrático, sabe, eu fui e apertei a sua mão. Gostei de fazer isso! Não concordo com muita coisa que Gilberto fez, com muita coisa que Gilberto disse, inclusive nos tempos, nos tempos da ditadura, entende, mas isso era outra questão. Mas, o que quero deixar sublinhado é a presença marcante da obra desse homem, sobretudo em Casa Grande e Senzala. Olha, minha gente, não é brincadeira um livro fazer cinquenta anos e permanecer atualizado. Não é brincadeira, e não se faz isso a custa de propaganda. Tem muito livro, por aí, que a gente vê dar um estouro de livraria, de venda, nos primeiros seis meses, e se acaba. Eu acho que é um livro que tem que ser respeitado. Naquela época, eu conhecia bem Gilberto. Eu votei nele em 1945, quando ele foi candidato a deputado e fazia parte da chamada esquerda democrática da UDN, de onde saiu depois o Partido Socialista.

V. Madeira – Caio Prado também.

P. Freire – Exato. Você sabe quem também? O Antônio Cândido. Este é outro intelectual por quem eu tenho um imenso respeito. É uma das melhores expressões da inteligência desse país! E do bom gosto desse país. Mas, não só admiro o intelectual que é ele, mas também o homem que ele é. Nós somos bons amigos. Nós vivemos anos sem nos conhecer pessoalmente. Há 4 anos, estive em São Paulo e nos vimos, finalmente, pela primeira vez. Era como se pudéssemos dizer, um ao outro, “como eu ia te dizendo”, tal a afinidade entre nós. Acho esse homem um intelectual de primeira linha nesse país. Um homem humilde, não por tática, mas por natureza e também por convicção. Quer dizer, um sujeito fantástico.

Mas, sim, voltando ao que falava, eu também li, na época, e registrei, fiz fichas que foram comidas pelos cupins e levadas pelas cheias, que o Recife teve durante o meu tempo de exílio, li todos os visitantes estrangeiros que andaram por aqui escrevendo suas crônicas. Arranquei dessas leituras coisas fantásticas sobre a nossa formação autoritária, apesar destes autores estarem distantes da dimensão das classes sociais como categoria analítica. Tu sabes, todas essas leituras me ajudaram enormemente para ampliar a minha compreensão desse fenômeno, quando eu me tornei um pouco mais íntimo das análises de Marx.

J. Chasin – Estou estranhando uma coisa, você não mencionou ainda, e estou esperando por isso, os autores católicos.

P. Freire – Ah! sim, sim, inclusive não estranhe muito não. Cedo ou tarde eu falaria…

J. Chasin – Mas, nessa época, eles já estavam presentes?

P. Freire – Nessa época eles já estão presentes, já estão presentes… Eu tinha cerca de 25 anos. Aí estou, por exemplo, com Mounier, com Maritain, Bernanos, que na época estava no Rio de Janeiro. Nessa época me deleitei também com Santo Agostinho. Eu tenho todo o direito, aqui, de cometer heresias e equívocos, porque nunca estudei teologia sistemática e nunca fui de Seminário. Mas, tu sabes que minha leitura de Agostinho, na época, me trouxe uma compreensão da presença de Deus na história, que não me imobiliza de fazer história, pelo contrário, é uma presença que deixa a nós, os homens e as mulheres, a tarefa de fazer a história e não de recebê-la?

R. G. Dantas – Exatamente a mesma experiência que eu tive, por coincidência, quando li pela primeira vez Santo Agostinho, confirmada depois quando me aprofundei mais. Um homem que tem teologia da libertação no espírito, da mesma forma que Santo Agostinho, tem de se preocupar muito com a história.

P. Freire – Há 5 anos voltei para o Brasil – e vocês que convivem com livros, podem imaginar o que significou para mim – quando um dia, meu cunhado, irmão da Elza, me disse “Paulo, amanhã o que sobrou da tua biblioteca chega”. Quando eu fui saído do Brasil (na verdade eu nunca saí), se instalou um problema: a minha família e meus amigos do Recife “tiveram o que fazer” com os livros do Paulo! Quatro mil livros, na verdade tão demoníacos e tão inocentes quanto todos os livros sacros, e nenhuma especificidade diabólica, mas para os milicos todas… Pois bem, o que fazer dos livros? Era meio arriscado para qualquer membro da família, pois, quando a violência em São Paulo tá começando, aqui tá no meio. Então, um amigo de meu cunhado, um industrial, que não tinha nada que ver com as minhas posições, disse assim: “José de Melo, eu não quero nem saber que diabo é que esse teu cunhado faz nem pensa, mas esse cara é teu cunhado e os livros dele vêm para aqui”. Levaram todos os meus livros em caixotes para lá, mas vieram as enchentes, que levaram alguns dos caixões e os cupins trabalharam os que restaram. Mas, quando o que restou dos caixotes chegou, no dia seguinte, passei o dia inteirinho e emendei pelo outro tirando a poeira, o mofo, alguns livros perdidos completamente com os cupins. Eu olhava o livro e me lembrava dos meus encontros com ele, eu sabia exatamente até onde eu tinha comprado e quando. Estavam todos encadernados, era tempo em que professor podia ainda encadernar livros… Tu sabes o que eu encontrei lá, intacto, perfeito, sem nenhuma poeira, sem nada? A Cidade de Deus, de Agostinho, cheia das minhas marcas, das minhas anotações. Agora, uma pena, só encontrei o primeiro volume de Casa Grande e Senzala, o outro sumiu. Eu tinha uma edição de Sobrados e Mocambos, que tinha 3 volumes, não sei se vocês se lembram dessa, o segundo volume desapareceu. Hoje, parece que a edição mais nova tem dois volumes. Esses livros estão hoje em São Paulo, comigo. Eu até que não os consulto, mas estão na minha sala, eu fiz uma estante especial para eles. Hoje opero muito mais a biblioteca mais nova, que está no outro canto.

V. Madeira – Dificilmente há, no Ocidente, um pensamento pedagógico sem uma referência à obra de Agostinho. Exemplo disso foi uma colega nossa que, para entender o Emílio, teve que estudar Santo Agostinho. E o que teria, à primeira vista, Rousseau a ver com Agostinho? Mas, no seu caso, eu não conhecia essa sua ponte…

P. Freire – Pois é, é uma coisa de que, realmente, pouco falo. Não porque pretendesse esconder, não, é mais uma questão de pudor intelectual. É que o fato de ter lido, quando jovem, Agostinho, o fato de ter até me apaixonado pelo que ele dizia, não me parece ser suficiente, de maneira nenhuma, para que eu venha a dar a impressão aos leitores de que seria um agostiniano, um homem muito marcado por Agostinho. Não, não. Isso ocorreu também com outros autores por quem eu passei.

Tem muita gente que se espanta, do mesmo modo, quando eu refiro certas dimensões da minha posição com relação à fé, por exemplo, com relação a Deus. A nível mundial, inclusive, como em uma entrevista coletiva, fora do Brasil, alguns jornalistas me falavam um pouco estranhos, depois de me terem ouvido num debate no dia anterior, de como, tendo a leitura da realidade que eu tenho, estar trabalhando com o Conselho Mundial das Igrejas. Eu de modo geral dizia: “Olha, em primeiro lugar, tenho a impressão que vocês têm um preconceito”. Oh! Coisa trágica são os preconceitos! “Vocês têm um baita preconceito contra o Conselho Mundial de Igrejas, porque pra vocês, Igreja necessariamente é ruim!” O Conselho Mundial de Igrejas teve um papel muito importante no momento em que a África começou a rebelar-se. Tu conheces a África?

J. Chasin – Um pedacinho.

P. Freire – O Conselho Mundial das Igrejas teve um papel importante no momento em que a África começou a levantar-se, a emergir, ingenuamente ou não, em função do seu tempo mesmo, a brigar para ser, para tentar ser. O Conselho Mundial das Igrejas se engajou nos processos de luta de libertação da África toda.

J. Chasin – Em que época você localiza isso?

P. Freire – Foi muito antes de eu estar lá. E eu tenho a impressão que, o fato de me terem aceito no Conselho, deveu-se a que já tinham o trato da experiência da libertação. Quer dizer, quando eles tomaram conhecimento do meu trabalho no Brasil e na América Latina, eles já tinham a prática da “Pedagogia do Oprimido”, que deve ter se iniciado na década de 60 com os movimentos de libertação. O Conselho Mundial sempre procurou manter relações extraordinariamente boas com o PAIGC de Amílcar Cabral, com o MPLA de Angola, com a FRELIMO de Moçambique e com outros, das outras Áfricas. Houve momento em que a direita das Igrejas tentou frear tudo isso. Por exemplo, houve uma crise muito grande, no momento em que o Conselho Mundial de Igrejas declarou que não depositava mais dinheiro nenhum em banco que ajudasse a África do Sul. Aos jornalistas eu falava nisso tudo, explicando, e dizia que o que se deve observar exatamente é se a minha fé atrapalha a libertação das classes dominadas. O que é preciso saber é se tenho ou não tenho direito de ter, dizia aos jornalistas, a ingenuidade de pensar que sou mais do que o meu cadáver? Isso é um direito ou não é? É. Agora, no momento em que eu começar a usar a crença, de que eu sou mais do que o meu cadáver, para alienar as classes trabalhadoras, então briga comigo. Mas se não, se pelo contrário, se essa crença me empurra mais ainda para a briga, então viva a minha ingenuidade! Entende? Quer dizer, eu acho que é preciso ser tolerante.

J. Chasin – Compreendo. Sei que na Guiné-Bissau você tem todo um trabalho. Em Angola, não sei em que ponto chegou…

P. Freire – Foi um trabalho menor. Mas acho que foi bom, foi importante.

J. Chasin – Sei. E quanto às reações? Em Moçambique, sei que foi muito forte…

P. Freire – Foi muito forte, em certas áreas.

J. Chasin – A FRELIMO, em certa medida, sentiu-se compelida a isso. Não se trata de endossar a orientação, mas de notar que se liga a um problema todo intrincado que, de toda maneira, havia desencadeado um processo de luta contra as Igrejas. Não só contra a Igreja Católica, mas também contra o missionarismo protestante, a religião muçulmana e a própria religiosidade “tradicional”, ou seja, tribal.

P. Freire – Exato.

J. Chasin – Você tem mais elementos a respeito? Como você compreende esta reação?

P. Freire – Olha, não tenho muitos dados. Mas eu acho, apesar de reconhecer historicamente as razões, inclusive ideológicas, que levaram algumas lideranças da FRELIMO a essas posições, por exemplo, a forma comportamental de muitos dos chamados grupos missionários, que mediatizavam indiscutivelmente o colonialismo, que esse procedimento é negativo. E essa minha resposta não é porque sou homem que tem compromisso de fé, que eu não nego de jeito nenhum, e não anuncio isso para arranjar defesa em meu radicalismo social, político, ideológico, de jeito nenhum! Mas também não digo isso para ser agradável a ninguém, não me interessa. Eu sou, nesse caso, a verdade para mim mesmo, quer dizer, essa é a minha convicção. Portanto, não é nessa dimensão que me oponho. Eu me oponho a essa posição, como a da FRELIMO, cientificamente. Entende, quer dizer, não religiosamente. Eu acho, que entrar na faixa de combate à religião, em culturas por “ene” razões profundamente religiosas, em que inclusive a religiosidade popular tem uma importância extraordinária na história, estreito demais…

J. Chasin – No mínimo é taticamente equivocado.

P. Freire – Taticamente equivocado não tem nem dúvida, mas eu acho que é incompetência, sabe, é incompetência científica. Mao Tsetung diz, num dos seus textos, que a tarefa do revolucionário não é jamais tirar, de dentro da cabeça das massas, a ideia de Deus e meter nela a ideia de Marx, mas é fazer a revolução. Eu acho também que a leitura de Marx, com relação à célebre frase “a religião é o ópio do povo”, demanda uma dimensão histórica, essa afirmação não é metafísica…

V. Madeira – Nem é de Marx, é de um pastor do século XVI.

P. Freire – Taí, eu te confesso que não sabia. Pois é, pra você vê! Essa afirmação não pode ser entendida metafisicamente. O que quero dizer com isso? Quero dizer que não é possível usar o verbo ser, aí, como se o predicativo do verbo ser, que é o ópio, se constituísse na natureza do substantivo, da natureza imutável. Isso seria metafísica imobilizadora, seria uma descrição metafisicamente imobilizadora do objeto ou do sujeito. A afirmação correta seria a religião está sendo o ópio do povo. E é assim que eu entendo Marx! É assim que eu leio Marx, porque é um pensamento impossível de ser enquadrado em gaiolas. De jeito nenhum, ele é rebelde demais, é dialético demais, é contraditório demais pra imobilizar-se. Quer dizer, um pensamento como esse não podia fazer definições metafísicas, entende?

Então você olha o fenômeno religioso hoje, no mundo todo, e ele está sendo o contrário do ópio. Entende? Agora, pode cair de novo no ópio. Aí eu digo que o problema é outro, o problema é outro. Você veja, não vou fazer aqui defesa nenhuma desse negócio do Ayatollah Khomeini, mas eu me lembro que eu estava na Europa, em Genebra, quando o representante dele deu uma entrevista na televisão francesa, dizendo: “o Ayatollah vai voltar no dia tanto, desce e toma o poder”. Eu disse, meus filhos, vocês estão assistindo a um momento diferente na história: esse cara vai tomar o poder. Foi e tomou o poder. A televisão filmou a juventude em Teerã, na rua, e perguntava: “por que é que você está aqui brigando?” Eles diziam: “porque desrespeitaram a nossa tradição religiosa”. E ninguém falou em outras causas da briga. Isso me fez uma baita transformação naquele tempo. Não te digo que foi pior ou melhor pra nada, estou objetivamente encarando isso.

Você não pode negar, por exemplo, a presença dos chamados cristãos, na Revolução da Nicarágua. Ela é tão grande que incomoda a ala conservadora e reacionária da Igreja mundial. Eu conheço a Nicarágua e dei uma contribuição mínima, mas dei, lá, no passado. A revolução foi uma coisa muito séria, muito profunda. Eu vi depoimentos de cristãos que lutaram, que brigaram, depoimentos extraordinários. Entende? Por exemplo, me lembro de um, dentro de uma igreja, em que o moço dizia: “aprendi com os padres desta igreja a Teologia da Libertação, ela me clareou a visão da história e me engajou profundamente na luta pelo meu povo. Lutei pelo temor também, quase fui morto nas cadeias, nas masmorras do Somoza, e voltei”. Vocês vejam que depoimento maravilhoso esse jovem deu! Porque, vê bem, ele poderia naquela altura, por exemplo, ter dito: “a Teologia da Libertação me ajudou a ler, a reler a minha história, a melhor participar dela, mas ao fazê-lo perdi a fé, e vim aqui hoje agradecer a ela a tarefa que cumpriu”. E eu acho que teria sido um depoimento extraordinário. Mas ele disse, a Teologia ilumina a minha presença na história, me leva à luta pelo meu povo, eu povo também: quer dizer, saí hoje das forças armadas, mas dentro da revolução, e vim hoje a esta igreja para dar o meu depoimento de que agora deixo a arma, que eu apanho de quando em vez, para voltar. “Seu” moço, esse depoimento eu ouvi lá, dois meses depois da revolução, dentro de uma igreja. E isso não se dá só ao nível desse moço, mas ao nível do Cardenal, do Ernesto Fernandes e assim por diante.

V. Madeira – Eles estão tendo uma posição de fé tão profunda que desobedecem o papa para obedecer a Deus.

P. Freire – Exato! Quer dizer, como, tendo em vista tudo isso, como é que se pode ler, “religião é o ópio do povo”, metafisicamente?

J. Chasin – Não quero estabelecer, aqui, uma “polêmica exegética” sobre esta passagem mas, pensando nos leitores, gostaria de te colocar diante do que entendo ser a forma precisa de sua interpretação. E me sinto fortalecido para fazê-lo, na medida em que, na dialogação com os cristãos da Teologia da Libertação, que venho me esforçando por travar, coincidentemente, ao fazer uma exposição, há meses, eu tocava neste ponto com Manfredo Araújo de Oliveira, que é sacerdote e filósofo da Universidade Federal do Ceará, que considera a Teologia da Libertação, digamos, pouco radical (no sentido preciso do termo) do ponto de vista teórico e que, portanto, necessita ir bem mais adiante. O entendimento, que então explicitei, da frase de Marx, recebeu dele acentuada concordância, e é o mesmo que coloco, sumariamente, a você.

A frase se encontra ao final de um dos primeiros parágrafos da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. É texto da passagem de 1843 para 1844, dos primeiros de Marx e publicado nos Anais Franco-Alemães. A frase é fortemente determinada pelo seu contexto, de modo que repele a interpretação banal de que a religião é “ópio do povo” no sentido vulgar de mero instrumento dos poderosos para a estupidificação das massas. De que seja uma pura e simples forma mediadora do entorpecimento espiritual, da consciência, da inteligência do povo, extrínseca a ele e às suas condições de existência. Diversamente, as determinações de Marx correm por dois ramos complementares, que mostram a religião como expressão e protesto contra a miséria real. Ou seja, no mundo degradado pela espoliação, a religião se põe como expressão espiritual de um mundo sem espírito. A crítica abre, portanto, para a busca de um espírito, de uma consciência que, em Marx não tem, nem poderia ter, sentido religioso. Nestes termos, o que seria, então, a religião? A forma ilusória, alienada (não podemos ser taticistas no debate) de uma espiritualidade real que o mundo, nas condições dadas, torna impossível, não comporta. Tudo isso, ao rejeitar a religião, não exclui ou desconhece, todavia, a dimensão de protesto de que ela também é constituída. É por aí, parece-me, que se dá, e a Teologia da Libertação o expressa bem, o encontro, hoje, entre o sentimento religioso e a vontade de transformação do mundo. Se dá hoje, como se deu, por exemplo, nas origens do cristianismo, mas é claro que sob fórmula distinta, ao menos na instrumentação conceitual. Que já é um outro e sério problema, cuja abordagem é urgente. É preciso assumir com serenidade todos esses encontros e todos esses afastamentos, pois é impossível ocultar, e isto jamais seria proveitoso, a diferença decisiva, por exemplo, no campo ontológico, entre a concepção de Marx e a concepção cristã. Ressaltando, com toda ênfase, que muitos temos e podemos fazer juntos, o que, em verdade, nem sequer foi principiado.

P. Freire – Exato, eu acho também.

R. G. Dantas – Gostaria de fazer uma complementação. Acho que resta também um campo aberto. Seria o caso de uma indagação, de uma investigação no sentido de apurar mais por dentro e mais radicalmente a própria ontologia subjacente ao marxismo, e saber se, por exemplo, a partir de sua análise mais profunda, digamos assim, da ontologia dialética, estaria excluída a dimensão transcendente. Evidentemente que, aqui, não vamos aprofundar isso, mas a posição e o veio, no qual me coloco atualmente, é que se exploramos, do ponto de vista ontológico, a dialética, chegaremos à necessidade de postular, não somente a posse de transcendência, mas a sua efetiva existência. Agora, este é um campo, veja-se bem, esse é um campo a ser investigado. E como dizia o Paulo, a obra de Marx é uma obra que a gente tem que situar historicamente. Foi um autor que não pretendeu, de maneira nenhuma, exaurir todas as questões, e daí sua densidade, daí a sua riqueza, daí a sua fertilidade. E nesse sentido elogio Marx.

P. Freire – Isso, não há dúvida. Sabes, me dói quando percebo certas tentativas de imobilização de Marx, também quando eu percebo certas decretações da sua morte. Não, não, pra mim o marxismo se refaz, sem se contradizer historicamente.

V. Madeira – Nesta noite, estamos diante do Paulo, como quem conhecesse uma árvore e estivesse estudando as suas raízes. E eu me sinto, face a ele, como quem já viu muitos galhos, e hoje estivesse procurando as raízes, a gênese. Paulo voltou a falar de uma coisa que tem sido um confronto frequente na vida dele, como, por exemplo, as perguntas dos jornalistas que formularam a questão de ele pertencer ao grupo do Conselho Mundial de Igrejas. Isso está a um nível superficial. A resposta do Paulo na ocasião e a colocação do Paulo aqui estão mais ao nível das raízes. Quando eu perguntava sobre a família, inclusive sobre as influências da família até nas inclinações vocacionais, digamos assim, é exatamente porque queria situar essas raízes. Nas vezes que eu me honro de ter trazido o Paulo para um trabalho junto ao Mestrado em Educação, eu ouvi seu testemunho sobre a fé em Jesus Cristo. O que é mais chocante, para o ateísmo do nosso século, não é que alguém trabalhe para o Conselho Mundial de Igrejas, é que alguém tenha a coragem – esse direito que o estreitismo da visão pseudomarxista nega – de dizer o que o Paulo disse naquele dia: “Não tenho sequer a coragem de me dizer cristão, eu só confesso a vocês que eu gostaria de ser”.

P. Freire – Eu procuro ser, mas não tenho coragem de dizer a vocês que sou.

V. Madeira – Hoje, nessa recolocação do problema em termos mais globais, evidentemente, não vamos exaurir essa discussão. Mas a frase citada por Marx, localizada por Chasin, naquele texto, era uma frase corrente na Alemanha de Marx, e antecedeu a Marx em três séculos, e foi pronunciada no culto por um pastor protestante. Esse discurso existe, Oscar Miller, que foi nosso professor em Roma, mostrou-me uma vez. Era o contexto de uma crítica ao catolicismo daquela época. Os alemães aprenderam essa frase e acabaram por decorá-la! Ela tornou-se adágio popular e Marx a repetiu, assim como no evangelho se encontram tantos adágios estereotipados, que foram da tradição oral e que Cristo teria repetido. Nesse contexto seria difícil, inclusive, saber o que significaria realmente essa categoria religião, no pensamento de Marx. Ou o que significaria naquele contexto histórico concreto em que se elaborava o seu pensamento. O que significaria para aquele pastor essa categoria religião? Certamente, não é a mesma coisa para Marx e para um adágio que é repetido, não tem a mesma conotação. E nós aqui chegamos a um outro nível de análise, que é o nível da análise ontológica, a uma proposta de interpretação dialética, para sermos fiéis à proposta de Marx, à sua metodologia. Não é?

P. Freire – O que eu acho errado é a existência entre nós, no Brasil, na vida política, cultural, acadêmica de um tipo de comportamento intolerante que tem muito a ver com a experiência autoritária. Vejam como o autoritarismo é intolerante, preconceituoso. Para mim a virtude da tolerância é uma coisa difícil de ser apreendida e não é só teologal, e eu nem sei se posso dizer assim, mas ela é revolucionária! Ela nada mais é que conviver com o diferente pra brigar com o antagônico. Mas aqui, no Brasil, a gente se acaba entre os diferentes e deixa o antagônico em paz! Então, por exemplo, por que é que um companheiro meu ou companheira minha, marxista-leninista – não importa que diabo de ista é! – que tenha um compromisso que eu respeito, compromisso profundo de participar de uma reinvenção, da reinvenção dessa sociedade no sentido profundo, por que negar a mim o direito de participar, de ser autor também da reinvenção?

J. Chasin – Certo, está bem claro. Valeria a pena, agora, relacionar tudo isso – a participação, a condição de autor –, concretamente com o golpe de 64 e os nossos dias.

P. Freire – Pois é, no pré-64 há um despertar. Não tenho dúvida, inclusive, de que foi exatamente o crescimento, o desenvolvimento, o incremento, da presença popular, que virou ameaça para as classes dominantes, foi esta presença emergente um dos fatores fundamentais para o golpe de estado. É por isso, no meu entender, que o golpe de estado, a partir de 64, muda completamente de feição, no Brasil e no continente. Ele inaugura um modelo diferente em toda América Latina. Até então a gente tinha dois ou três generais fortes…

R. G. Dantas – Caudilhos.

P. Freire – Caudilhos, que transformavam seus países, maiores ou menores, em fazendas pró-gado, dos quais, talvez, o último seja o Paraguai. De 64 em diante o golpe passou a virar símbolo de ideologia, símbolo de projeto. Pode ser que esteja equivocado em minha leitura, mas foi uma tentativa de viabilizar, tão rapidamente quanto possível, a modernização capitalista, que estava sendo sacrificada, segundo as análises das classes dominantes, sobretudo das “matrizes”, pelo afrouxamento das democracias latino-americanas. Era preciso, então, um certo rigor, uma certa mão forte para modernizar. Então esse golpe inaugura a clareza ideológica dos golpes.

Veja a chamada ambiguidade do regime populista; de um lado o populismo, a situação populista, atrai as massas e atende em parte as suas demandas, e, do outro, pretende manipulá-las para abandoná-las a certa altura do nível de desenvolvimento da sua presença. Mas essa experiência é contraditória. A presença das massas nas ruas, nas praças é imprescindível, porque sem isso não há populismo, mas a própria presença delas e sua experiência de demandar, de protestar acaba por educá-las. Quer dizer, a prática de vir às praças demandar, ensina a demandar. E isso cria o grande impasse do populismo. É por isso que, toda experiência de liderança populista, chega a um momento de ruptura: ou a liderança populista se orienta, se inclina no sentido das massas e aí então se dá o golpe de direita, ou essa liderança desaparece. Ora, isso ocorreu com Perón, com Vargas e com Goulart.

Agora, veja, eu acho que, no caso de Recife, no caso do Nordeste, no caso de Miguel Arraes, embora eu não conhecesse todos os seus auxiliares, o espírito do trabalho, da proposta de governo se orientava no sentido de viver, de compreender e de estimular a presença das massas. Então, por exemplo, quando Miguel Arraes, prefeito recém-eleito, convoca um grupo de intelectuais, um grupo de artistas, um grupo de operários e nos diz que gostaria de fazer um trabalho ligado às massas populares do Recife, mas que a prefeitura não tinha emprego pra dar a ninguém, não tinha condições para isso, eu pude dizer: “Arraes, um trabalho assim, dentro das nossas condições de vida, será possível porque a gente tinha escolhido, há muito tempo, uma militância assim”. Então, é aí que nasce o MCP. Germano Coelho entrou e assumiu uma liderança inegável do ponto de vista da formulação dos objetivos do MCP, quer dizer, Germano Coelho foi uma grande presença demarcadora do MCP. E é dentro desse espírito, espírito também histórico, desse caldo histórico que eu apareço como uma expressão dele. Quer dizer, eu não inventei, na minha cabeça, idealisticamente, um momento da história brasileira pra fazer a proposta pedagógica desse momento, eu fiz uma proposta político-pedagógica em função dele, disto que estava lá…

V. Madeira – Você foi produzido por isto.

P. Freire – Eu fui produzido…

J. Chasin – Dentro deste contexto, então, a tua proposta não poderia ser identificada a uma utopia pedagógica?

P. Freire – Eu me identifico como utópico, sabe? Agora, num sentido diferente do que, geralmente, é definido. Pra mim, utópico não é o que é impossível. A postura utópica é a postura que vive, entende, e se experimenta na tensão entre a denúncia e o anúncio.

J. Chasin – É o “sonho com o pé no chão” do Lênin?

P. Freire – Exato, é isso. Vê bem, esse trecho do Lênin é absolutamente fundamental. Eu te diria, agora, procurando um outro testemunho em Amílcar Cabral: não há revolução (uso agora a palavra com todo o peso dela) sem sonho. A questão que se coloca é saber se, quem sonha, está sonhando um possível histórico. Segundo, se, quem sonha, está lutando para possibilitar o que está sendo impossível hoje. Fora disso a revolução burocratizaria as mentes e não seria a revolução.

J. Chasin – Por isso é que você prefere reinventar o mundo e não…

P. Freire – Por isso!

J. Chasin – … e não transformar o mundo?

P. Freire – Isso! Porque pra mim a reinvenção é algo mais. Olha, quando falo na reinvenção do mundo, estou falando da reinvenção da sociedade A, B e C. Estou implicando a reinvenção da sociedade, a reinvenção, primeiro e sobretudo, do ato de produção. Segundo e até simultaneamente com isso, estou falando na reinvenção do poder. Para mim, a questão que se coloca ao revolucionário, neste fim de século e de milênio, não é mais a tomada do poder, mas é a tomada do poder que se consubstancia na reinvenção do poder tomado.

J. Chasin – Mas, apenas “reinventar” o poder não é estar renunciando ao grande propósito emancipador de liquidar com todas as formas do poder?

P. Freire – Ah! mas mesmo que você aceite que, um dia, todas as formas de poder desapareçam, me parece que é utopia também, inclusive no bom sentido…

J. Chasin – Veja, não estou aludindo à tese anarquista.

P. Freire – Exato.

J. Chasin – Abstraído todo e qualquer detalhamento, estou referindo a eliminação do poder político enquanto poder dos homens sobre os homens e não sobre as coisas.

P. Freire – É exatamente nessa linha que eu falo na reinvenção. Só se pode marchar para esse tipo de poder no momento em que for feito qualquer coisa nas condições materiais. Essa reinvenção não se dá na cabeça da gente… Daí a necessidade de reinventar a produção. O substantivo que se impõe a essa reinvenção é a participação real, participação das massas populares na delimitação, inclusive, do que produzir, do para que produzir e em favor de quem produzir. No momento em que, porém, a produção, a solução ou delimitação dela, esteja submetida aos técnicos apenas, e que proprietários do saber técnico e científico rechaçam, descasam, ou se divorciam da sabedoria popular (que se gesta na prática social do povo e não na cabeça só do povo e que, portanto, a sabedoria popular não pode ser simplesmente superada pelo saber científico, exato, rigoroso), não se reinventa o ato produtivo. E o povo tem dois direitos, entre outros fundamentais: primeiro, saber melhor o que já sabe; segundo, participar da produção de saber que não tem. E isso não se faz sem a reinvenção do ato produtivo.

J. Chasin – Portanto, a reinvenção, tal como você a determinou nesse momento, não leva o saber popular a dispensar o saber científico…

P. Freire – De jeito nenhum, de jeito nenhum! Agora, o que essa reinvenção implica é que a rigorosidade científica não pode estar alheia à sabedoria popular, como se ela fosse uma pura ingenuidade. O que a rigorosidade científica precisa saber é, em primeiro lugar, que ela não é uma categoria metafísica, que é uma categoria histórica. O que a rigorosidade precisa saber é que a ciência tem uma historicidade, o conhecimento científico tem uma historicidade. A ciência jamais poderia ter sido uma a priori da história. Ela se gesta, ela é a posteriori. Em segundo lugar, por ser o rigor algo de que precisa o saber revolucionário, é que ninguém, ninguém chega lá partindo de lá. Eu inclusive só reconheço a existência de um porque há a existência de um aqui. E não há como chegar lá, a não ser partindo do aqui. O que, às vezes, nós os intelectuais rigorosos, esquecemos é que o nosso aqui quase sempre é um do povo. E a gente tem que partir é do aqui dele! Então, quando tu me colocas a questão de se a sabedoria popular prescindiria da rigorosidade a que nós, uns mais do que outros…

J. Chasin – … estamos obrigados.

P. Freire – Estamos obrigados, a minha resposta é de jeito nenhum. Mas, eu simplesmente penso que não é possível arrancá-la para um nível de rigorosidade, esquecendo o que é. Esse é o ponto de partida. E agora eu volto a Mao Tsetung. Mao Tsetung, na sua epistemologia, colocava um negócio muito simples e dizia: o que nós temos que fazer com as massas populares, com e não para elas, e jamais sobre elas, o que nós temos que fazer (agora estou ampliando um pouco o que ele dizia), é desafiá-las a que ultrapassem o saber que alcançam através da sua própria prática, o saber que as deixa ao nível da sensibilidade do fato e do objeto, para que alcancem a razão de ser do fato e do objeto. A razão de ser se vai dando historicamente. A gente tem diferentes razões de ser, dos fatos e dos objetos. Por exemplo, o que se conhecia de Marte, até 8 anos atrás, não é necessariamente o que se conhece hoje. Quer dizer, isto é a historicidade da ciência. Agora, pretender, de um lado, desconhecer a ingenuidade como se a ciência nunca tivesse sido ingênua, não é possível. É estabelecer a ruptura entre ingenuidade e criticidade.

J. Chasin – Em suma, sem as energias naturais e espontâneas das massas e de sua consciência, articuladas convergentemente com o saber objetivo, historicamente determinado, não se transforma o mundo.

P. Freire – Eu acho que não. Eu acho que não, viu? Agora, vê bem, gostei enormemente quando tu falastes aí, em, em conjugadas, e quando tu falastes também em espontâneas, e não falastes em espontaneísmo.

J. Chasin – Claro. Deliberadamente.

P. Freire – Isso aí é o que é o correto. Por exemplo, negar a importância, na história, do espontâneo é absurdo, é uma incompetência científica. Agora, trabalhar espontaneisticamente é desservir…

V. Madeira – Paulo, eu só queria fazer uma colocação de nordestino. Enquanto você estava em plena atividade, eu estava cursando filosofia, de 59 a 62. E você pode imaginar a empolgação daquela geração… E você fez um resgate, hoje nessa entrevista, que me parece muito importante. Você recuperou e revalorizou o caldo de cultura que o produziu e ao seu próprio trabalho. Isto é, nós temos visto comentários sobre Paulo Freire fora do contexto, como se Paulo existisse sem…

P. Freire – Como se eu fosse um a priori.

V. Madeira – É, sem Germano…

P. Freire – Sem Germano.

V. Madeira – Sem Arraes.

P. Freire – Sem Arraes.

J. Chasin – Sem Brasil.

P. Freire – Sem Brasil.

V. Madeira – Sem Brasil, mas sobretudo sem…

J. Chasin – Sem Nordeste.

P. Freire – Isso!

V. Madeira – Essa questão eu tenho colocado nas minhas aulas com a liberdade de quem, de quem conhece o seu pensamento sobre isso. E há outra coisa, vive-se repetindo e eu não conheço, fala-se de um método de Paulo Freire, que eu nunca vi!

J. Chasin – Essa é muito boa!

P. Freire – É ótima.

V. Madeira – Você já viu esse método de Paulo Freire?

P. Freire – Não, não. Eu concordo contigo inteiramente.

V. Madeira – Não é? Quer dizer, eu sinto uma proposta metodológica com três eixos fundamentais, um epistemológico, um axiológico e um teleológico…

P. Freire – Exato.

V. Madeira – … na sua obra como um todo. Nem método de alfabetização eu nunca vi você propor, não é? Ou estou errado?

P. Freire – Não, eu estou achando a sua análise corretíssima.

V. Madeira – Essa proposta, me parece, Toronto percebeu.

P. Freire – Em parte apenas.

V. Madeira – E desenvolveram, sobretudo, a epistemologia. Não sei se eles continuam…

P. Freire – É, eu tenho estado um pouco distante, mas acho que sim, acho que sim…

V. Madeira – Nós aqui do Brasil precisávamos ser mais advertidos sobre isso. Porque, quando você estava no exterior, até o MOBRAL queria dizer que estava fazendo alfabetização pelo método de Paulo Freire. E hoje você se torna explorável comercialmente, porque certas editoras ou certos pedagogos… De repente aparece Paulo Freire aplicado a isso, Paulo Freire aplicado àquilo, Paulo Freire aplicado a não sei o que mais. Tem Paulo Freire aplicado à alfabetização de prostitutas e assim por diante. Quando, na realidade, me parece que está havendo uma confusão conceitual, entre método e procedimentos didáticos e técnicos de ensinar determinadas coisas, que não se ocupam das grandes linhas de orientação de uma ação…

P. Freire – Isso.

V. Madeira – Por isso você nos surpreendeu aqui uma vez, com uma dificuldade na favela Beira Rio, onde os professores do Centro de Educação da UFPB queriam fazer uma alfabetização pelo método Paulo Freire, e o que o pessoal da favela queria, realmente, era a cartilhazinha! E você desbancou todo mundo, quando disse: “mas porque vocês não pegam a cartilha que o povo está querendo?” Por quê? Certamente porque você não tem um método pra propor, você não vem com uma cartilha pra substituir a outra cartilha.

P. Freire – Exato, exato.

V. Madeira – E aquele grupo, que estava indo para a Beira Rio, estava querendo levar uma cartilha Paulo Freire.

P. Freire – É, você tem razão. Tenho a impressão que, cada vez mais, se generaliza a compreensão da minha busca de uma compreensão crítica da prática pedagógica, em lugar de se insistir no chamado método Paulo Freire. Isso me deu um trabalho enorme porque eu precisei lutar muito, inclusive lutar contra uma coisa que sempre me pareceu difícil e até dramático, que é a minha mistificação. Uma coisa que me infernava, por exemplo, era eu me descobrir objeto, objeto de curiosidade, mas eu lutei sempre e aprendi, inclusive, a viver essas situações mitificadoras. Agora eu começo a observar nos Estados Unidos, na Europa, uma compreensão cada vez melhor. Por exemplo, eu tenho sido convidado, não apenas por universidades fora do Brasil, mas também por grupos que trabalham nas áreas populares. Eu fui procurado, em 83, pela Universidade de Stanford, que realizou um curso muito interessante sobre Paulo Freire; não sobre o método de Paulo Freire, mas sobre o pensamento e a prática de Paulo Freire. Eles deram o curso de junho a 14 de julho, e me convidaram pra eu dar o curso de 15 de julho até o final do mês com eles. O curso foi uma beleza, porque coube a mim discutir, com eles, o que eles haviam discutido sem a minha presença, entende? Quer dizer, foi um negócio muito desafiador e eles foram muito rigorosos na seleção dos alunos, exigindo que os caras escrevessem um texto com cerca de 60 páginas, só justificando porque iam a esse curso, e fazendo a análise crítica de pelo menos 3 livros meus. Foram muitos, são muitos acadêmicos. Neste curso, tive oportunidade de discutir, a nível de uma interpretação epistemológica, o meu trabalho, bem na linha do que você colocou agora.

J. Chasin – Qual é a linha epistemológica que você entende que esteja presente em seu trabalho?

P. Freire – A educação não existe sem uma epistemologia, seria uma imensa ingenuidade pensa o contrário. A epistemologia corta tudo. Por isso mesmo é que pra mim, por exemplo, quando eu afirmo que a educação é uma certa teoria do conhecimento, posta em prática, está aí já a advertência para a natureza epistemológica da educação. Agora, qual é essa epistemologia? Pra mim é a dialética, é concreta, mas está também condicionada por uma perspectiva política, histórica. E aí eu me situo em termos da substantividade democrática, quando eu discuto a natureza epistemológica da educação, quando me pergunto sobre o papel dos sujeitos cognoscentes da educação que são os educadores-educandos.

Mas, veja, tem um outro lado na experiência do curso. Quando estava lá fui procurado, então, por um pessoal que representava 10 a 12 grupos que trabalham em áreas populares na Califórnia. E me disseram o seguinte: “Paulo, nós soubemos que você estava aqui em Stanford e procuramos você para saber se você tem ou não interesse de um dia vir a esse país, mas não apenas para a Universidade, mas para trabalhar conosco também”. Vejam bem, eles consideravam o trabalho universitário necessário, eles não eram basistas, não, eles não tinham a ingenuidade de reduzir tudo às bases e de idealizar as massas e a prática. Eu disse a eles que estaria vindo dos Estados Unidos no ano seguinte, e que a universidade iria me pagar pelo meu trabalho, e então eles não precisariam me pagar nada, era só a hospedagem e eu daria 15 dias da minha estada nos Estados Unidos a esses grupos. Olha, foi uma beleza! Os caras se organizaram, terminaram me pagando um pouco, e faziam coisas lindas. Um dia, num dos debates com eles, eu disse: olha, puxa, estou gastando uma fortuna de telefonemas, porque eu chamo Elza três vezes por semana…

V. Madeira – Paixão grande mesmo!

P. Freire – Resultado, no fim de um encontro, quando tivemos 4 horas de debates, às 5 da tarde, um deles me deu um envelope e eu disse: Oh! Muito obrigado! Pensei que tinha me dado uma carta. Quando cheguei em casa, que eu abro, tinha 25 dólares e um bilhetinho! “meu caro Paulo, é para ajudar você a conversar com Elza”. Mas é bonito isso, poxa, quer dizer, eu acho que a revolução, por exemplo, que menospreze um bilhete como esse não é revolução.

J. Chasin – Eu estava aguardando uma última questão sobre Elza pra fechar a entrevista, mas já que você criou o clima… Então, lá vai uma pergunta, no sentido mais generoso: Elza é a síntese da infância e da revolução?

P. Freire – Poxa, tá excelente! Pois é, olha, eu não sei, eu não sei. Se eu disse que é, eu talvez crie um problema com a minha mulher, com o pudor dela, mas pra mim ela é.

J. Chasin – Paulo, você não pode deixar de falar um pouco sobre o ISEB e o exílio.

P. Freire – Rapidamente eu diria, a vocês e aos leitores, que eu não tenho porque ficar triste pelo fato de ter vivido também uma influência isebiana. Eu acho que muita gente, que escreve sobre o ISEB, não chegou – inclusive pelo fato de não ter vivido a circunstância histórica – , a experimentar os ângulos diferentes em que o ISEB esteve na frente. Engraçado, eu tive dois ou três encontros pessoais muito interessantes, antes do golpe, com Álvaro Vieira Pinto, que é um homem que eu, quase sempre, considero injustiçado, um homem que hoje vive escondido no seu apartamento. Possivelmente, dos jovens intelectuais brasileiros de posição marxista, que eu conheço, não quero cometer injustiça com outros, eu conheço só um que vai muito, ou ia muito, ao Rio de Janeiro, visitá-lo constantemente. É o professor Saviano. Tenho um profundo respeito pelo Álvaro Vieira Pinto. No exílio, no Chile, é que a gente aprofundou intensamente uma amizade enorme. O Álvaro é um grande intelectual, mas é um homem tímido. Acho que ele ficou muito ressentido com o que houve com ele depois do golpe. O Álvaro, engraçado, é o homem, possivelmente, que mais falou, do ponto de vista teórico, da consciência crítica, mas é profundamente ingênuo… Eu o visitei em 79, quando passei pelo Brasil, e ele me mostrou aproximadamente 8 livros concluídos, parados na biblioteca dele, 8 manuscritos. Tem um, por exemplo, que é toda uma crítica da sociologia burguesa. Tudo isso está absolutamente imobilizado no apartamento do Álvaro. Eu não sei inclusive, se ele não vai ficar triste comigo por ter eu agora declarado isso… Mas, eu nunca me esqueço, por exemplo, quando Álvaro me escrevia para o Chile, da Iugoslávia, me falando das dificuldades que ele tinha, de como ele gostaria de trabalhar para o povo de lá. Então ocorreu um episódio, que eu conto pra vocês aqui, correndo o risco de magoar a sua modéstia. O governo iugoslavo recebia os exilados brasileiros e garantia a sua sobrevivência. Álvaro, então, escreveu em alemão ao Ministro da Educação, onde ele dizia que se sentia mal por não retribuir o apoio dado pelo governo, e queria dar uma contribuição oferecendo, então, três cursos, dois deles no campo da filosofia, e que ele poderia ministrar esses cursos em francês, inglês ou alemão. O ministro não respondeu. Então ele disse a si mesmo que não tinha havido resposta porque tinha escrito em alemão. Então ele vai a livraria e compra o livro Como falar Servocroata através do Alemão. Depois de três, quatro, cinco meses, não me lembro bem, ele já é capaz de falar (porque Álvaro, se não me falha a memória, fala e escreve em dez línguas), e aí ele escreveu em servocroata, fazendo o mesmo oferecimento. Também não teve resposta.

J. Chasin – Já não era uma questão de idioma…

P. Freire – Já não era uma questão de idioma. Era uma questão de linguagem. Eu, então, no Chile, ao nível do Ministério de Educação, falo da contribuição que ele poderia dar e o ministério se abre para recebê-lo. Mas aí precisava que se trabalhasse ao nível da diplomacia e o Paulo de Tarso e o Plínio Sampaio, que eram muito amigos do Ministro das Relações Exteriores do Chile, vão lá e colocam a questão. E o Álvaro veio e o Governo iugoslavo pagou a passagem dele e da esposa. Quer dizer, ele não tinha críticas ao governo, ele tinha mágoas de não ter podido dar a contribuição que ele queria. Fui esperá-lo, no aeroporto da cidade de Valparaiso, e vejo Álvaro com uma boina, uma figura estranhíssima, e um capote negro, que eu acho que foi do paí ou do avô dele. Finalmente chega a hora do exame das malas do Álvaro. O funcionário da alfândega foi abrindo as malas e perguntou: “o senhor, por favor, o que é que o senhor faz?” Então o Álvaro olha para ele e diz: “eu sou filósofo”. Aí o homem fechou a mala dele repentinamente e disse: “já viu filósofo com contrabando?” Eu achei uma maravilha essa história! Trouxemos o Álvaro para nossa casa e ele morou conosco um mês, talvez, e aí conseguiu um apartamento perto do nosso e eu o visitava diariamente. Bem, se deu, então um outro caso maravilhoso. Um ex-aluno dele, do ISEB, conseguiu um trabalho para ele no Centro das Nações Unidas, que discutia o problema da população, e ele fazia traduções. Ele traduzia do russo, do inglês, às vezes do inglês para o espanhol, e me parece que pagavam dois dólares por página e dava para ele viver direitinho. Além disso, havia um negócio do Ministério também. Um dia a diretoria desse Centro pediu que o Álvaro escrevesse uma crítica à demografia. E ele disse: “mas eu sou filósofo!” E ela: “mas é exatamente por isso que lhe peço”. Ele pede, então, uma bibliografia dos títulos que ela considerasse mais importantes. “Em que língua?”, perguntou ela. E ele disse, “não importa”. Então, ela trouxe em russo, espanhol, francês, inglês e português etc. Eu o visitava no período da leitura: ele leu e estudou aproximadamente 300 livros fundamentais. E, nos três outros meses, escreveu um livro extraordinário sobre demografia. Quer dizer, você vê, um homem desse, mesmo quando criticado, precisa ser respeitado.

J. Chasin – Você, quando se aproxima da questão do ISEB sempre fala em criticável. O ISEB é um equívoco total?

P. Freire – Não, não, eu acho que não é um equívoco total. O ISEB faz parte das positividades e das negatividades do tempo. O ISEB traz no seu corpo, no seu bojo, as marcas do seu tempo. O ISEB traz uma perspectiva nacionalista e explícita o chamado pacto das classes, que foi uma proposta do Partido Comunista Brasileiro, que colocava como luta prioritária a luta anti-imperialista e antifeudal, então isto não era apenas uma deformação ideológica do ISEB, mas tratava-se de um negócio mais amplo. Mais amplo do que apenas um educador, como eu, metido naquele negócio.

J. Chasin – Então o ISEB é, ou não é, apenas uma fábrica de ideologias?

P. Freire – Não. Eu com todo o respeito à crítica que se faz neste sendo, eu diria que, em primeiro lugar, dificilmente você encontra qualquer coisa que não seja ideológico, quer dizer…

J. Chasin – Mas no sentido restrito do ISEB?

P. Freire – Não, eu não sei se seria só isso…

J. Chasin – E quanto ao exílio?

P. Freire – Recentemente terminei de fazer a revisão dos originais de um livro onde publico uma conversa de aproximadamente 10 horas entre um exilado chileno e eu, realizada em agosto em Genebra, e que se chama Por Uma Pedagogia da Pergunta. O livro está revisto e está agora para ser impresso. Nesse livro falo muito da minha experiência do exílio e cito Vieira Pinto. É com ele que eu começo essa síntese rápida pra entrevista. O Vieira Pinto é o exilado mais sofrido com quem eu convivi. O Brasil lhe doía. O Brasil doía a Álvaro Vieira Pinto não apenas pela distância geográfica em que ele estava, mas doía o Brasil em Vieira Pinto também, e talvez sobretudo, por causa do antipovo que se vivia, no golpe de estado brasileiro. Era o testemunho da negação dos seus sonhos, que fazia que doesse o Brasil tão intensamente. Mas, a dor da saudade era tão grande quanto esta última e Álvaro às vezes chorava, conversando comigo. E dizia “Paulo, eu realmente não resisto viver longe do Brasil”. E voltou. Álvaro voltou em 67. Mas numa tarde de outono, ele me dizia: “estou encabulado Paulo, o exilado vive uma realidade de empréstimo”. E depois, e depois daquela afirmação do Álvaro, eu vivi intensamente a experiência deste empréstimo, eu vivi o que é isso. E descobri uma coisa no meu aprendizado, ao longo dos anos, eu descobri que o exílio, enquanto realidade de empréstimo, enquanto contexto secundário, só existe na medida em que é precedido do contexto original. Não é possível entender o exílio fora da inteligência da tensão existencial entre o contexto de origem, de onde a gente é expelido, e o contexto de empréstimo, aonde a gente chega. Então, o exílio implica, de um lado, o transplante, mas do outro um implante. E a questão que se coloca para o exilado é a sabedoria de transar essa tensão. Quer dizer, se você apenas aceita se ver como transplantado, você recusa a realidade de empréstimo, e você vive nostalgicamente a saudade do contexto de origem. E aí você frustra a sua presença na realidade nova, você transforma o contexto de empréstimo numa pura marquise, debaixo da qual você passa uma chuva. Mas não é possível viver assim! Mas se, por outro lado, você transforma o implante, na busca de superar o desarranjo emocional que o transplante provocou, se você transforma o implante num enraizamento, ou numa situação de profundo enraizamento na realidade de empréstimo, você estabelece a ruptura possivelmente com a sua identidade. No tal livro eu analiso muito longamente essas duas hipóteses. Aqui, numa pura síntese, eu diria que a partir dos meus quase 16 anos de saudade, mas nunca de nostalgia, eu aprendi que a transa dessa tensão é absolutamente fundamental para guardar em ti, de um lado, a tua identidade cultural e do outro, de te fazeres sentir útil, não apenas ao contexto, enquanto trabalhas lá, mas também ao povo de lá, a projetos políticos também, desde que tu tenhas a sabedoria de não te expores, na política partidária do contexto interno.

Sobre o texto “Chasin entra em ação” e seus equívocos

Por: Ciro Domingos

Em um texto de nome “Chasin entra em ação: crítica à ‘ontonegatividade da política’”, escrito por Fernando Savella, há abundantes apontamentos acerca de supostos erros teóricos e, consequentemente, práticos da concepção chasiniana de política. Entretanto, salta aos olhos não o que o texto esbanja, mas surpreendentemente o que nele falta: os trechos que sustentam os ataques – ou antes, os equívocos. Com apenas duas parcas e vagas menções a dois materiais do Chasin, erguem-se críticas que bastaria uma leitura superficial sob o autor criticado para que fossem desmentidas. Portanto, trago para ti, quem lê, exatamente do que o camarada Savella se esquivou, isto é, os trechos capazes de evidenciar a minha posição, não a dele. Mostremos, assim, os erros do nosso companheiro.

Após cinco parágrafos de divagações introdutórias à crítica de Marx à concepção hegeliana de Estado e como, sob esse embasamento, surgiu uma crítica vinda de Engels, mas principalmente de Lenin, à democracia burguesa e sua suposta universalização, a qual, em verdade, nada mais é do que as particularidades da classe dominante, Savella dispara, na metade de seu sexto parágrafo, o seguinte:

“Na construção do conceito, ainda, define como a ontonegatividade da politicidade, ou seja, da condição daquilo que é político. Sem uma definição clara do que é o “político”, opera uma identidade entre política e Estado burguês, assumindo um significado próprio da linguagem mainstream da própria ideologia dominante que restringe o político à atuação dentro das instituições representativas, e iguala o Estado burguês ao Estado socialista enquanto uma mesma forma, que seria, ela mesma, uma relação capitalista”

Há aí uma série de críticas que vale a pena numerar separadamente para que o trato seja mais claro e das quais a de número um é notavelmente a mais importante, pois é ela que se manterá presente durante o restante do texto e dela que surgem os demais enganos propagados nas outras linhas: 1) Chasin operaria uma identidade entre Estado burguês e política. 2) Chasin assumiria o significado de política do mainstream. 3) Tal assunção o faria cair na ideologia dominante e tomar que o político nada mais é do que a atuação dentro das instituições representativas. 4) Haveria uma equivalência entre Estado burguês e socialista. 5) O próprio Estado – e portanto, visto que são iguais, a política – seria uma relação capitalista.

Confiramos, então, a veracidade da primeira crítica. Operaria mesmo, Chasin, uma equivalência entre ambos os conceitos? No texto de nome Futuro Ausente se encontra todo um capítulo, o capítulo I, de nome Lineamentos da Politicidade Antiga, reflexões acerca do surgimento do poder político, isto é, como ele surgiu e por quê, tomando – justificadamente – o exemplo grego como o mais adequado para extrair tais ideias. Podemos nos referenciar em trechos bastante explícitos, como no que ele afirma que “por seus limites, debilidades e incipiências intrínsecas, a comunidade antiga (o exemplo grego é a melhor iluminura) não é socialmente auto-estável, é incapaz de se sustentar e regular exclusivamente a partir e em função de suas puras e específicas energias sociais. Esta incapacidade ou limite social engendra, a partir de si mesma, em proveito e em vista da estabilidade comunitária, uma dessubstanciação social como força extra-social – uma desnaturação e metamorfose de potência social em força política. […] essa força extra ou extra-social, enquanto poder político, é ainda, por princípio e factualmente, um poder político ‘irreal, ilusório ou fictício’, tão incipiente quanto o estado germinal que lhe corresponde, e que ainda não é um verdadeiro estado, […] até a era do capital, quando se manifesta na plena maturidade de estado político centralizado.” Fica explícito como a política, não só é desidentificada com o Estado, como esse é uma manifestação da maturidade da política. Muito distante de igualá-los ou confundir ambos, há uma diferenciação explícita em questão de tempo e de característica fundamentais. Logo, voltemos nominalmente à crítica: é verdade que Chasin operaria uma identificação entre Estado burguês e política? A resposta é claramente não. Uma lida nas primeiras páginas do artigo acima mencionado resolveria o problema, mas o nosso camarada não o fez. Uma olhada rápida na palestra mencionada por ele também resolveria o problema, onde Chasin afirma, entre os minutos 1:48 e 1:55 de um recorte dessa [1], que “o Estado como tal só existe no sistema do capital, portanto ele não é uma universalidade”, isto é, para Chasin, de início, o termo Estado burguês é uma redundância, havia anteriormente, pré-capitalismo, outras formas de política, de “formas de dominação, como ele afirma no artigo Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, mas não de Estado.

Acerca das críticas de número dois e três (pois acredito que seja melhor tratar elas em conjunto, visto que a terceira derivaria, em tese, da segunda) há já de início um salto de raciocínio tão ousado quanto inválido. Diz nosso camarada que Chasin (1) assumiria o significado de política do mainstream (qual seria?) e, daí, ele cometeria o erro de (2) cair na ideologia dominante e assumir que política é apenas a atuação dentro das instâncias representativas. Ora, como do assumir um significado restrito de política se decorreria, por si só, a ideia de política como atuação dentro de instâncias representativas? Desde quando a atuação dentro do poder político (a qual Chasin não se restringe, vale lembrar) significa meramente dentro das instituições representativas se o Estado democrático é só uma das poucas formas de Estado (e, do ponto de vista do criticado, consequentemente, uma das muitas formas de política)? E desde quando o significado de política do dito mainstream afirma que fazer política é atuar dentro da representação? Seria Marx Weber um pensador fora desse âmbito, pois afirma que qualquer forma de disputa pela condução do poder político é fazer política? Isso é falso para o Chasin, para o pensamento político chamado de mainstream e para a lógica. Deve-se dizer, portanto e antes de tudo, o óbvio: que uma afirmação não deriva da outra como o texto do Savella faz parecer. E, claro, que a segunda afirmação, além de sem lastro em sua premissa, é sem lastro na realidade. Além disso, o que fez, o nosso camarada, com o 4º ponto d’As Inflexões da Ensaio contido no artigo Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, onde há a inequívoca posição de “recusa do eurocomunismo”? Ou com a crítica ao politicismo, esse que restringe a prática ao político ou sobrevalorizaria esse último em detrimento da atuação na sociedade civil (principalmente em sua anatomia, a base econômica), presente tanto no Rota quanto em diversos outros artigos como Politicização da Totalidade, ¿Hasta Quando? ou em As Maquinas Param, Germina A Democracia? Todos esses inclusos em seu compilado de nome Miséria Brasileira. Onde pôs, o nosso camarada, as críticas presentes nesses mesmos artigos à postura de privilegiar a luta pela democracia (tendo essa como necessária), i.e., pelas instâncias representativas, que na época eram bem mais parcas do que hoje, enquanto o terreno econômico que a possibilitaria estaria em segundo plano? Teriam sido escondidos atrás da imensa imprudência de se escrever um artigo contra as ideias que não conhece? Estariam atrás da enorme falta de citações e referências que o texto possui? Ou estariam debaixo dos vários minutos não vistos da palestra indevidamente citada (cuja duração, diga-se de passagem, é superior a três horas sem que haja nenhuma referência de onde, que parte das horas está a afirmação, mesmo tendo disponível um trecho de meros quinze minutos recortado onde Chasin explica sua visão do Estado)? Perguntas de caráter abertamente retóricos, pois as respostas eu, francamente, prefiro sequer saber. Prossigamos, portanto, com os equívocos do nosso camarada cuja pretensão ultrapassa, e muito, o conteúdo, afinal, a crítica de número dois ainda não foi respondida à altura.

Chasin de fato abraça a visão de política do mainstream? Ora, à essa pergunta, vale responder com algumas outras: onde estava o nosso camarada enquanto o mainstream dizia que “tudo é política”? Parece, tal afirmação, compatível à visão da política como atributo contingente à humanidade? Onde estava nosso camarada, estudante de ciências sociais, que não viu as aulas sobre os contratualistas, por exemplo, pensadores que afirmavam o surgimento da sociedade civil a partir do Estado e não o oposto ou nas aulas sobre Hanna Arendt. Parece, a visão de Chasin, compatível com essas? Aonde foram parar as leituras que nosso camarada deveria ter tido do texto chasiniano, onde é afirmado justamente o oposto do dito mainstream, que a política não é uma fonte para se conseguir soluções para os conflitos da sociedade civil tal qual achavam aqueles que superestimaram a tomada revolucionária do poder político e aqueles que viam numa prática política ética a solução? Se Savella tivesse de fato lido o único artigo que cita, veria nas primeiras páginas que a motivação do autor para escrever Marx- a determinação ontonegativa da politicidade é, além dos eurocomunistas, todos os demais que se colocavam na “maciça e profunda tendência atual à reinvocação salvacionista da política, precisamente na época em que já se evidencia sintomas agudos do próprio esgotamento da política”. Essa é uma menção não apenas aos eurocomunistas, mas aos petistas que já punham suas ideias de “política ética” em disputa e aos pretensos revolucionários que tem suas estratégias comprometidas graças a uma superestimação da tomada do poder político (ênfase: superestimação de um lado não significa desprezo do outro). Não seria justamente, destarte, contra o mainstream, essa “tendência atual”, que Chasin escreve? Não estaria, na verdade, o nosso camarada Savella, colocando Marx justamente no mainstream sem perceber?

Avancemos, então, aos pontos quatro e cinco – que merecem ser tratados, também, em conjunto – e adicionemos algumas divagações (ou alguns enganos, se preferirem) posteriores. Savella afirma que, na concepção criticada, (4) haveria uma equivalência entre Estado burguês e socialista e daí (5) o próprio Estado – e portanto, visto que são iguais, a política – seria uma relação capitalista. Acredito que a essa altura já está óbvia a confusão feita pelo nosso camarada acerca da equivalência inexistente entre Estado e política. Mas o que pensava Chasin sobre o poder político e a prática revolucionária?

Muito distinto do que os parágrafos iniciais do texto Chasin entre em Ação dão a entender, não há forte discordância nesse âmbito entre esse – pintado contraditoriamente acima como alguém que restringiria a ação à institucionalidade enquanto o próprio Savella reconhece a crítica dele aos eurocomunistas, característicos por tal visão (?) – e Lenin. Deixemos o próprio leitor ter sob sua vista alguns trechos das aulas transcritas e nomeadas como Superação do Liberalismo e outros sobre o que Chasin chamaria de metapolítica.

“Participação sim, mas não participacionismo. O participacionismo é a participação sem consciência da participação. A participação é um participar consciente, ou seja, munido teoricamente e conscientemente dos propósitos a alcançar, tendo uma visão estratégica e sabendo também quais são os passos táticos a aplicar. Isto é um trabalho muito demorado e muito áspero de preparação. Claro que a experiência é fundamental também, mas uma experiência sem a consciência da experiência expõe fatalmente as massas à derrota e à manipulação. Quem pode ensinar e fazer isto, sem dúvida nenhuma, é apenas o partido político. […] Para que isso ocorra é preciso ter um dispositivo político-partidário que o possa fazer. E esse dispositivo precisa ter uma componente fundamental de produtores dessa consciência científica, ou seja, o que estou sugerindo é o que a história revelou como forma de proceder que é a junção entre uma vanguarda do movimento espontâneo de massas, especialmente dos trabalhadores, com a vanguarda da intelectualidade que se põe do ângulo destas massas. Este encontro recebeu no começo do século o nome de fração bolchevique. E o que é a fração bolchevique? É o encontro entre duas vanguardas e cada uma delas trazendo um conteúdo distinto: a fração do movimento de massas traz a espontaneidade e as energias decisivas de um lado e de outro a fração da intelectualidade que terá produzido a melhor ciência possível do seu tempo. É isto que se articula e leva à possibilidade da transformação. Fora disto não há chance.”

Entretanto, se Chasin se posiciona de maneira favorável ao assalto aos céus, e não ao jogo da institucionalidade burguesa, como nosso camarada afirma, como poderia coadunar com a destruição da política e do Estado? A resposta a esse justo questionamento vem em duas partes. A primeira vem com a menção à sua palestra, especificamente aos minutos 7:24 a 7:40: “ele [Marx], na Comuna de Paris, extrai a forma da realização da destruição do Estado pela imediata substituição do Estado centralizado, que é destruído, pelo poder comunal que já não é mais o Estado. É um poder político, mas que já não é mais um poder político do Estado.” A segunda está na página 65 da última edição da obra magna de Chasin, Marx – Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, quando afirma ser necessário “uma política orientada pela superação da política, fazer uma política que desfaça a política”, pois “[a revolução radical] não demanda ou propõe a mera prática política, nem reconhece como sua atividade característica e decisiva, mas exige uma prática metapolítica: conjunto de atos de efetivação que não apenas se desembarace de formas particularmente ilegítimas e comprometidas de dominação política, para substitui-las por outras supostas como melhores, mas que vá se desfazendo, desde o princípio, de toda e qualquer politicidade, à medida que se eleva da aparência política à essência social das lutas históricas concretas […]. Numa frase, a crítica marxiana da política, decifração da natureza da politicidade e de seus limites, é por consequência o desvendamento da estreiteza e insuficiência da prática política enquanto atividade humana racional e universal.”

Resumamos a concepção chasiniana: a política possui limites intrínsecos, pois é no fundo força da sociedade civil que foi tornada alheia e estranha aos seus membros e ganha aparência de autonomia e centralidade, principalmente na forma de Estado, forma política centralizada oriunda do sistema do capital. Portanto, a tomada do poder político é essencial para a revolução radical, entretanto, não basta e nem é o central, aquilo característico dessa revolução, mas só possui efetividade se nessa tomada há uma desefetivação da forma política própria do sistema do capital – capaz apenas de perpetuar sua fonte – se for encabeçada pela modificação da própria sociedade civil para além da disputa do poder político e se o Estado for substituído pelo poder comunal, forma política própria da revolução que não tem por fim impor uma nova dominação legítima, mas antes desfazer da política enquanto braço direito dos atos na sociedade civil, na eliminação da base material do velho sistema do capital. Percebe-se que, muito diferente do Chasin limitado à institucionalidade e que ignoraria a política ou enxergaria a tomada do poder político como um desvio idealista (como afirma nosso camarada sem citar qualquer coisa que embase seu posicionamento), há aí um Chasin revolucionário e apologético à revolução radical, que não só enxerga o fazer político enquanto necessário como também o põe no devido lugar no processo revolucionário, isto é, fora do centro, onde há a sociedade civil, e fora do fim, onde ele se tornaria obsoleto e inútil, mas no meio do processo, onde ele é inevitável e deve ser corretamente conduzido. Todas essas informações são de fácil compreensão e nosso camarada poderia tê-las sabido, se, claro, tivesse estudado o autor que se dispôs a criticar, todavia, não o fez e, destarte, não as soube. Ao esgotar de tais pontos, sigamos com o apontar de equívocos.

No prosseguimento da “crítica”, Savella passa a mostrar – ou antes a tentar demonstrar – como a visão criticada não estaria, como se afirma, lastreada em Marx e como se derivariam dela equívocos práticos. Diz, o nosso camarada, que em Marx “O engajamento do proletariado na prática política não se dá no momento em que a classe se sujeita à ‘disputa pela verdade’ do interesse geral do Estado burguês, mas quando se lança na luta consciente e organizada por seus interesses de classe.” O que fizera, esse trecho, com o primeiro artigo do Luta de Classes na França onde Marx narra a disputa política do proletariado por interesses, por vezes, distintos dos seus? Ou os artigos escritos na Nova Gazeta Renana e reunidos sob o título de A Burguesia e A Contra-revolução, na qual surpreende como a burguesia trai o proletariado após usar ele para fazer uma mera revolução política e se unificar com o reino? Teria ele esquecido tal qual fizera com todos os trechos do Chasin que desmentem suas afirmações? Ou teria ele os colocado na mesma gaveta que o próprio compromisso sério com a verdade e esquecido ambos ao escrever o que infelizmente publicou? Perguntas cujas respostas, mais uma vez, não precisam ser dadas para que sejam óbvias. Mas o nosso camarada, não satisfeito, vai além nas afirmações insensatas acerca do materialismo histórico.

Prossegue assim, no texto: “‘Não há Estado de transição!’, brada. Se a revolução não for social, não será a via política a articulá-la, e o desenvolvimento e “fracasso” da União Soviética é evidência disso. O caráter profundamente idealista dessa posição lhe escapa, e também lhe escapa, em sua tentativa de ser completamente fiel aos textos de Marx, que a obra do alemão advoga pelo reconhecimento teórico da dialética entre as diferentes instâncias da sociedade. O Estado, para Marx, determina sim a “sociedade civil”, ou melhor, as relações de produção e a sociabilidade, na medida em que serve de comitê gestor dos negócios da burguesia e como superação ideológica das particularidades concretas próprias da chamada sociedade civil, ocupando aí a função que dá lugar às disputas de hegemonia apontadas por Gramsci. Não se trata de uma mera inversão do esquema hegeliano, de forma que o Estado se tornasse então o passivo em relação à determinação da sociedade civil, como um reflexo.” Todavia, percebe-se que nosso camarada, como comum nos meios marxistas, confunde a dialética com reciprocidade e advoga exatamente contra o que Marx defendia. Haveria mesmo esse dilema entre um Estado que é mero reflexo, puramente ilusório, e uma reciprocidade entre o Estado e sociedade civil? Claramente não. A posição de Marx diverge de ambas e é aí onde mora a necessidade da concepção negativa de política. Se nosso camarada tivesse compreendido direito Marx, e consequentemente reconheceria que Chasin acerta quando fala de política nos textos do velho alemão, perceberia que a posição de Marx é da sociedade civil que brota a força social usurpada e tornada alheia e estranha aos seus membros (política), é dela que vem as lutas sociais que tomam forma – também, embora de modo algum só ou principalmente – política, é a partir das imposições da sociedade civil que essa forma política ganha uma forma centralizada (Estado) e é mediante a disputa das classes que esse Estado é utilizado de modo mais ou menos favorável a cada um. A questão não é transformar o aparelho estatal em reflexo passivo, mas de mostrar que ele é, em essência, força e utilização da sociedade civil por partes dela mesma, não possui autonomia e portanto não há como determiná-la, pois os atos do poder político, seja lá qual seja a sua forma, são, no fundo, atos de camadas da própria sociedade civil. O que aparenta ser o político em sua autonomia sobre a sociedade é, em essência e desmistificação, a sociedade civil sobre ela mesma usando um pedaço dela mesma como meio para fins que visam, no fim, a própria sociedade, seja a sua manutenção ou modificação. A visão de Savella faz tanto sentido quanto dizer que é um porrete que bate em alguém, não aquele que o porta. Ora, para nos mantermos na metáfora, não se trata aqui de desconsiderar como o porrete é, os porquês dele ser assim e como podemos utilizar a nosso favor, mas apenas de lembrar que ele não possui autonomia alguma e toda disputa e atitude que o envolva deve ter como base a briga entre quem porta e quem, por meio dele, apanha. Mas ao invés de compreender que essa disputa é algo essencialmente social, prefere cair numa espécie de ecletismo que transforma a concepção materialista da história em um multifatoralismo bem comum, ironicamente, ao mainstream, onde cada fator tem sua influência e a produção e reprodução da vida material perde seu caráter de matriz donde partem todos os demais e onde a política é tomada como algo autônomo. Sinteticamente, quando Savella entra, o materialismo histórico sai. E em seu lugar fica um Marx que mais tem a ver com Weber e seus diversos fatores (algo criticado desde Plekhanov até Borón).

Sinteticamente, no texto há apenas uma série de disparates sem qualquer sustentação. O autor se preza a deferir críticas e mais críticas, mas não cita trechos e mais trechos, pois não poderia fazê-lo. Como citar o que não foi dito? Como mencionar algo que contém o conteúdo oposto ao que se diz estar mencionado? Se o autor fosse mais honesto – o que, pelo frigir dos ovos, seria pedir demais – ele poderia ter dito que, na realidade, quem sofreu com “efeitos na prática que sua teoria orienta” foi o próprio partido, o PCB, que por duas vezes foi alertado pelo Chasin de que não ia por uma linha correta, pouco antes do golpe de 64 e pouco antes da redemocratização. Em ambas as vezes o PCB estava errado e Chasin estava certo. Hoje o Partido faz autocrítica de seu passado e dá razão, ainda que de maneira indireta, ao autor criticado por Savella. Se Savella fosse honesto, perceberia que ao jogar a crítica de Chasin fora e ignorar os efeitos práticos de uma prática centralizada na política e não na sociedade está cuspindo não só na história de um autor que já está morto e sequer pode se defender de tamanha injustiça feita sem que ele fosse sequer lido com a devida atenção, mas cospe sobretudo para cima.

O que podemos concluir é que o texto de Savella nada diz de verdadeiro sobre Chasin, ignora completamente elementos fundamentais da teoria marxiana (o materialismo histórico e a crítica à política, finge que o criticado não possui razão, por cima do que diz hoje o próprio partido, e possui uma conduta de ocultar trechos e tornar as fontes, já tão pouco mencionadas, desestimulantes para uma checagem. É lamentável um tipo de descompromisso seja publicado sem qualquer pudor de quem escreve, de quem divulga e de quem, de fato, publica. Mais do que um planetário de erros, o texto de Savella é uma constelação de mentiras.

PS: Todos os trechos sem referência de página são de artigos e materiais que podem ser buscados na internet em pdf ou word.

[1] O vídeo se chama “Chasin: crítica ao Estado, à política e à experiência soviética”, um trecho mais curto da palestra mencionada pelo Savella, menção que condenaria o leitor a procurar em mais de três horas por trechos de menos de vinte minutos.

Economia centralmente planificada, Hayek e a mancha vermelha de Júpiter.

Essa é uma tradução do artigo “THE CENTRALLY PLANNED ECONOMY, HAYEK, AND THE RED SPOT OF JUPITER.” do site Cold and dark stars. O artigo original pode ser lido aqui:
Artigo original

Após a queda da União Soviética, economistas marginalistas proclamaram triunfantemente que o mercado é o único sistema realista para administrar nossa complexa civilização global de bilhões de pessoas. Embora a falta de moradia, as casas desocupadas, a fome e o desperdício de alimentos persistam, os marginalistas argumentarão que o mercado não é perfeito, mas que não existe alternativa melhor. No entanto, a catástrofe iminente da mudança climática, pode (re)colocar a questão de uma economia socialista democrática e globalmente planejada. O aquecimento global foi quase inteiramente causado pelas leis do movimento do capitalismo, que levam ao desgaste dos corpos e da Terra, dada a forma como a competição leva as empresas e os estados-nação a colher os mais baratos recursos naturais e do trabalho. Além disso, o fato de que a duração da jornada de trabalho não diminuiu em quase um século, e o imperialismo exacerbou as assimetrias predatórias entre o centro e a periferia, deveria tornar a questão do planejamento econômico global central para os socialistas.

A economia planificada possui uma injusta má reputação, mesmo entre os socialistas. O debate parece ter sido resolvido na primeira metade do século 20 com o chamado “problema do cálculo socialista”, onde economistas marginalistas como Hayek e Mises criticaram a incapacidade das economias centralmente planejadas de computar a autêntica oferta e demanda de bens específicos. Hayek em particular, deu o ataque mais sofisticado, com seu ensaio, O Uso do Conhecimento na Sociedade, onde argumentou que o mercado agia como um computador inconsciente e distribuído, onde os recursos são alocados eficientemente através do cálculo da demanda de bens por sinalização de preços entre diferentes partes do sistema (por exemplo, indivíduos e empresas). Muitos socialistas criticaram os argumentos de Hayek ao longo do último século, mas muitas das respostas socialistas são colocadas de uma perspectiva filosófica e epistemológica. No entanto, acredito que o argumento para o planejamento central pode ser contextualizado usando novas ciências matemáticas, como ciência da computação e dinâmica não-linear – campos que não existiam nos dias de Hayek. Por isso, tentarei contextualizar o argumento de Hayek usando um método mais “matemático” (mas não quantitativo) e retrucarei de uma perspectiva socialista a favor da economia planejada.

O ponto principal do argumento de Hayek é que os planejadores centrais não têm possibilidade de conhecer todas as informações necessárias para alocar bens com eficiência em uma sociedade. Em contraste, o mercado funciona como um sistema gigante de computação distribuída, onde empresas e indivíduos agem como “processadores paralelos”, onde cada processador individual calcula um pequeno problema local: um lojista calcula que uma determinada marca de cigarros é muito popular em sua vizinhança e o consumidor calcula sua demanda individual por cigarros no momento em que olha para as marcas de cigarros disponíveis. Os processadores paralelos, que são incorporados em indivíduos, firmas e instituições, então por sua vez, comunicam-se uns com os outros, finalmente calculando coletivamente o preço de uma mercadoria em particular, que incorpora a demanda agregada e a oferta de um bem em particular. Para concluir, os planejadores centrais nunca podem adquirir todas as informações necessárias para calcular eficientemente as necessidades e desejos de um bem em particular, enquanto o mercado, que atua como uma rede distribuída de núcleos de processamento, pode alocar bens com eficiência porque cada processador calcula um problema menor e mais simples (por exemplo, a preferência de um indivíduo por cigarros Marlboro, ou a observação por um pequeno lojista de que cabos USB de 1,5m se esgotam de forma anormalmente rápida em uma determinada loja) e se comunica com outros processadores através de preços e compra, levando a alocação de bens onde esses são demandados.

O velho socialista contesta que não há nada de eficiente no mercado, dadas as casas vazias, a comida desperdiçada, a pobreza massiva, os ciclos econômicos e etc. Entretanto, os marginalistas retrucariam que o mercado como um sistema de computação distribuída tem seus problemas, mas sempre será melhor do que o planejamento central, citando a escassez de papel higiênico e as longas filas de pão. Hayek argumenta que o problema é, em última análise, sobre a informação – o planejador central nunca terá informações suficientes a tempo para planejar a demanda no nível granular – por exemplo a demanda por uma marca específica de cigarros, ou pelo tamanho certo de um smartphone ou uma determinada máquina de lavar roupa.

No entanto, o ataque hayekiano ao planejamento central é válido apenas no nível granular. Se a forma forte do ataque hayekiano contra o planejamento central fosse verdadeira, então as ciências naturais seriam invalidadas. A falta de informação no nível granular é realmente um problema comum nas ciências naturais – onde, por exemplo, podemos prever o clima (a temperatura média da Terra ao longo de dez anos), mas não podemos prever o tempo (a temperatura, precipitação, etc por cem quilômetros quadrados em um determinado dia). Da mesma forma, podemos prever as propriedades termodinâmicas médias de um gás, como temperatura ou pressão, mas não podemos prever o movimento de uma molécula individual do mesmo. Isso pode ser entendido no jargão científico como ruído aleatório em escalas locais que torna as teorias mais incertas em escalas menores, mas ainda permite previsões e modelagem em escalas maiores. O “ruído aleatório” pode ser considerado como imprevisibilidade devido à falta de informação em escalas menores. Por exemplo, no caso da previsão do tempo, a falta de informações sobre todas as variáveis que afetam o clima, como medições precisas de temperatura, erros numéricos decorrentes dos computadores resolvendo as equações hidrodinâmicas que governam o fluxo de ar, a modelagem inadequada da geografia, etc., leva rapidamente a resultados imprecisos em nível local. No entanto, no caso de previsões sobre as escalas globais do clima, como a temperatura média de toda a Terra nos próximos dez anos, o ruído estatístico em escalas menores torna-se irrelevante. O que Hayek sugere é que, como o ruído estatístico existe em um dado sistema econômico, o planejamento econômico é absolutamente impossível. Ele enquadra seu argumento como informativo, afirmando que o planejador central não tem informações suficientes sobre a demanda de bens no nível local. No entanto, muitas ciências naturais têm de lidar com o ruído estatístico extremo em pequenas escalas, tornando a previsão apenas possível em escalas maiores, de modo que seu argumento parece invalidar também as ciências naturais, como astronomia, ciência climática e ecologia. Portanto, um cientista responderia que seu argumento só se aplica às escalas menores, onde o ruído domina, e não diz nada sobre sistemas de escala maior. Hayek argumentou que não se pode comparar as ciências econômicas e naturais, porque as segundas estão preocupadas com leis naturais objetivas, enquanto as ciências econômicas estão preocupadas com desejos humanos subjetivos; no entanto, esse argumento é irrelevante, porque desejos óbvios podem ser quantificados, o que é precisamente o que psicólogos ou firmas como a Amazon fazem.  Por fim, a evidência empírica invalida seu argumento contra o planejamento, pois a instituição da propriedade privada e o estado de direito, necessários à existência do mercado, são sistemas nacionais, em grande escala e às vezes internacionais, que requerem uma quantidade excessiva de coordenação e planejamento, dado que estas instituições têm sobrecarga incrível sob a forma de polícia, burocratas, advogados e juízes. Essas instituições são formalmente necessárias para o mercado em geral, mesmo que não exista bem-estar social e regulamentação alimentícia.

Outro ataque interessante contra o planejamento vem de Nassim Taleb, que reviveu o argumento hayekiano em espírito, mas com o uso de ferramentas estatísticas modernas. Seu ponto mais importante é a existência de “cisnes negros”, eventos extremos raros e imprevisíveis que podem desencadear mudanças radicais em um dado sistema. Alguns exemplos de cisnes negros são terrorismo, grandes inundações de cidades costeiras e desastres nucleares. Todos estes são eventos raros com consequências extremas e quase imprevisíveis. Por exemplo, a contagem de corpos do terrorismo é altamente variável, de um par de pessoas morrendo em um determinado evento, para milhares de pessoas. O terrorismo também pode desencadear instabilidades sociais imprevisíveis em um determinado sistema político. Outros cisnes negros vêm na forma de obras de artes famosas, crises econômicas, a derrubada de governos e eventos históricos mundiais. O problema do planejamento econômico, então, é que, por sua própria natureza, é cego aos cisnes negros; assim, economias planejadas são muito frágeis a choques imprevisíveis, não muito diferentes de um mecanismo de relógio muito complicado que pode desmoronar no instante em que um dos dentes da engrenagem quebra. No entanto, a existência de cisnes negros como choques econômicos não é realmente um argumento contra o planejamento econômico, dado que as sociedades humanas ao longo da história sempre foram ameaçadas por cisnes negros e choques, com doenças, guerras e invenções tecnológicas acabando com sociedades inteiras. Então, quer a economia seja planejada ou não, cisnes negros perigosos ainda podem aparecer. Uma maneira de lidar com cisnes negros é com um gerenciamento de riscos sensato; embora não possamos prever cisnes negros, podemos projetar sistemas robustos a choques. Por exemplo, edifícios em regiões sismicamente ativas são construídos para resistir a terremotos, que são cisnes negros, dada sua raridade, natureza extrema e imprevisibilidade. Hipoteticamente, não há razão para que economias não sejam construídas para resistir a choques.

Minha réplica ao argumento hayekiano é altamente abstrata e formal, dado que a forma original do argumento de Hayek é muito formalista. No entanto, seria interessante ver como seria uma economia global planejada e como a incerteza granular apontada por Hayek seria resolvida. O planejamento econômico poderia ser feito de dois processos: um planejamento distribuído e descentralizado a partir de baixo e um planejamento centralizado de amplo curso a partir de cima. O planejamento central amplo seria dirigido por conselhos eleitos e revogáveis, mas lidaria com o planejamento no nível central, global, lidando com objetivos planetários, como garantir que a economia não ultrapasse as restrições ecológicas (por exemplo, o aquecimento global). Outro objetivo de planejamento global seria reduzir a duração do dia de trabalho. Este último ponto é importante, dado que marginalistas como Keynes prometeram um dia de trabalho curto que seria desencadeado pelo movimento do mercado. No entanto, agora é óbvio que o tamanho do dia de trabalho é inteiramente planejado e político, e não pode ser reduzido apenas pelo comportamento estocástico do mercado. De fato, a diminuição histórica do dia de trabalho aconteceu inteiramente por causa da legislação desencadeada pela atividade militante da classe trabalhadora. Finalmente, o planejamento central global teria que lidar com problemas globais exacerbados como a desigualdade global e o imperialismo. O planejamento distribuído e descentralizado, a partir de baixo, seria responsável pelos cálculos microeconômicos de oferta e demanda de bens específicos, como o modo adequado de armazenar estoques para os consumidores. O capitalismo é competente na parte microeconômica, estocando lojas com mercadorias baseadas na oferta e na demanda, mediadas por sinais de preços – este último ponto estava no centro do argumento de Hayek. No entanto, não há razão para que cálculos microeconômicos eficientes não possam ser feitos por conselhos locais e democráticos com o auxílio de computadores avançados. Os dados de entrada sobre os desejos e necessidades do consumidor, que podem ser sinalizados pelo que os indivíduos compram nas lojas, podem ser rapidamente processados por algoritmos de aprendizado de máquina, não muito diferentes de como as compras e o preço do capitalismo propagam as informações de oferta e demanda. Na verdade, esse tipo de processamento de big data já é feito com planejamento intra-empresa hoje, com empresas como Amazon e Wal-Mart planejando a alocação de recursos com base em dados do consumidor que são processados com algoritmos de aprendizado de máquina. Os conselhos democráticos socialistas que planejariam os movimentos microeconômicos também poderiam atuar como firmas semiautônomas, mas de propriedade pública, usando uma abordagem semelhante de cálculo microeconômico que as empresas capitalistas modernas, mas sem depender de sinais de preços, fazendo isso através do uso de big data do consumo e informações relacionadas a restrições globais, como recursos mundiais, planos de desenvolvimento global, risco ecológico, alocação de recursos globais, etc. (essas restrições globais seriam produzidas pelos conselhos de planejamento global).
O planejamento global é fortemente hipotético e exigiria a existência de uma república socialista mundial. No entanto, dadas as duras restrições planetárias que o aquecimento global desencadeou, é urgente defender alternativas à anarquia do mercado. Se os socialistas não defendem uma alternativa, facções da classe capitalista, como os fascistas, certamente apresentarão suas próprias formas de economias centralizadas e autoritárias, dadas as ameaças sociais e políticas que o aquecimento global traria à mesa. O aquecimento global vai desencadear desastres humanitários que levarão a consequências sociais e políticas inquantificáveis, como uma enorme crise de refugiados que irá encorajar reacionários e nacionalistas. Portanto, o problema que os socialistas enfrentam não será apenas ecológico, mas político, e se não trouxermos nossa própria alternativa à mesa, nossos inimigos o farão.

Ontologia Crítica de Lukács e Realismo Crítico

Lukács

Essa é uma tradução do artigo “Lukács’ Critical Ontology and Critical Realism” de Mário Duayer, professor aposentado na UFF e João Leonardo Medeiros, professor associado na UFF (Universidade Federal Fluminense), feita por Gabriel Carvalho, estudante de Ciências Sociais da UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco). O artigo original pode ser lido aqui:

Artigo Original (em inglês)

O artigo dos professores Mário Duayer e Leonardo Medeiros tem o objetivo de apresentar uma crítica contundente às expressões mais atuais de neopositivismo na filosofia da ciência, especificamente a recente proposição de “virada linguística”, extraindo elementos, para tal, das tradições filosóficas do realismo crítico e, principalmente, da ontologia marxista conforme apresentada pelo filósofo húngaro György Lukács. Além disso, o artigo faz um breve apanhado histórico-sistemático das categorias lukácsianas de análise e crítica ontológica, oferecendo um pequeno porém extremamente valioso resumo crítico da renovada tradição marxista representada no riquíssimo pensamento de Lukács. O artigo traduzido pode ser lido aqui:

Artigo traduzido

Boa leitura!

Big-data e Supercomputadores: Fundações do cyber-comunismo.

Essa é uma tradução do artigo “Big Data and Super-Computers: foundations of Cyber Communism” do cientista da computação e marxista escocês Paul Cockshott. O artigo original pode ser lido aqui:
Artigo original

Eu estarei elaborando as seguintes teses:

  • A inabilidade do socialismo do século XX avançar para o comunismo, levou a crise da URSS.
  • O comunismo requer um estágio definido de desenvolvimento tecnológico.
  • Esse estágio só foi alcançado no final do século XX.
  • O problema de adequação técnica não pode ser entendido somente em termos humanistas de “Abundancia”, ou em termos de “Reino da necessidade”.

No processo, abordarei o que considero como equívocos sobre o comunismo por parte dos soviéticos, antes de analisar os estágios de transição necessários para que uma economia moderna alcance o comunismo.

O que é um modo de produção

O socialismo é um modo de produção?
A definição padrão, derivada de Stalin, é que um modo de produção é uma combinação entre as forças produtivas e as relações de produção:

Modo de produção = forças produtivas + relações de produção.

Isso foi resumido por Stalin como segue:

“Porém as forças produtivas não são mais do que um dos aspectos da produção, um dos aspectos do modo de produção, o aspecto que reflete a relação entre o homem e os objetos e as forças da natureza empregados para a produção dos bens materiais. O outro fator da produção, o outro aspecto do modo de produção, é constituído pelas relações de uns homens com outros, dentro do processo da produção, pelas relações de produção entre os homens.” [19]

Essa tem sido a ortodoxia, mas eu penso que ela está errada. Outro significado do termo “Modo de produção” é, de acordo com Marx, o modo de produção material. Este modo de produção, de acordo com o prefácio de Marx de 1857, condiciona a vida social e política. As relações de produção só devem ser adequadas às forças produtivas:

“Na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual.  [12]

Essa concepção havia sido exposta por Marx dez anos antes, na sua famosa frase:

“O moinho de mão dar-vos-á a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial.” [11]

Nessa concepção, a característica essencial da produção capitalista é a sua indústria de maquinas (machine industry), produção por meio de maquinas “motorizadas” (movidas a vapor). Mas isso deve nos dar uma pausa para pensar, o socialismo também não é caracterizado pela produção por meio de maquinas, pelo uso de formas artificiais de energia?
Lembre-se que Lenin expressou essa mesma ideia quando deu a seguinte equação:
Socialismo = Soviets + Eletrificação
Como a diferença entre energia a vapor e energia elétrica é secundaria, e sabendo que economias capitalistas também usam eletricidade, o ponto importante é que capitalismo e socialismo compartilham do mesmo modo de produção.
Nós podemos resumir isso em duas equações que definem o modo de produção:

Modo de produção capitalista = indústria de maquinas movidas a energia.
Modo de produção socialista = indústria de maquinas movidas a eletricidade

Portanto o modo de produção socialista é um subconjunto do modo de produção por maquinário – Que utiliza grades elétricas a nível nacional. Por isso o primeiro objetivo da URSS foi criar o plano de eletrificação GOELRO.
Capitalismo e socialismo não se diferenciam tanto no seu modo de produção quanto em suas relações sociais.
Relações de produção capitalista = Produção de mercadoria + Propriedade privada + Trabalho assalariado + anarquia de mercado
Relações de produção socialista = Produção de bens de consumo + Propriedade pública + Trabalho assalariado + planejamento.

As diferenças principais são que:
1- As relações de produção socialistas podem restringir a forma-mercadoria ao mercado de bens de consumo.  Dentro do setor público não existe mudança de posse, pois os meios de produção vão de uma fábrica do estado para outra, portanto esses bens não são mercadoria.
2- A economia socialista substitui a propriedade privada pela publica.
3- Ela (a economia socialista) substitui a anarquia de mercado pelo planejamento diretivo.
Essas são diferenças nas relações de produção, mas não no modo de produção.

Marx vs URSS sobre o comunismo

Marx, no Critica ao programa de Gotha apresenta um processo de três estágios de transição para o comunismo:

  • Capitalismo
  • Comunismo de primeiro estágio, sem mercadorias ou dinheiro, sem proprietários privados, pagamento em “tokens” de trabalho, de acordo com o trabalho realizado. Serviços públicos pagos por um imposto de renda sobre a renda do trabalho.
  • Comunismo de segundo estágio, pagamento de acordo com as necessidades, famílias maiores, receberiam rendas maiores.

Note que mesmo no primeiro estágio, Marx assume a abolição do dinheiro. Também existe – contrariando as impressões espalhadas originalmente por Bukharin – nenhuma menção em Marx da ideia de que todos os bens irão ser distribuídos de graça em um sistema comunista. Distribuição de acordo com as necessidades é baseada em uma avaliação objetiva de necessidade – serviços de saúde gratuitos podem estar disponíveis para quem precisa, mas cirurgias cosméticas não. Agora deixe-me contrastar essa esquematização com o que se tornou a ortodoxia soviética, derivada dos textos de Bukharin mencionados anteriormente e de Stalin[18]. Novamente nós temos um modelo de 3 estágios:

  • Capitalismo
  • Socialismo: Mercadorias e dinheiro são mantidos, propriedade do estado + cooperativas, pagamento de salários em dinheiro de acordo com o trabalho feito e o status desse trabalho, impostos indiretos sobre vendas, não imposto de renda fornecem a principal receita do estado
  • Comunismo: Produção de mercadorias substituída por troca, distribuição gratuita de muitos bens, propriedade estatal total.

A diferença principal é que os Soviets identificaram o primeiro estágio do comunismo com algo muito menos radical: Socialismo. Eles esqueceram que Socialismo foi uma tendência muito mais ampla do que o comunismo, e que um capitulo inteiro no Manifesto Comunista foi dedicado a explicar como os comunistas eram diferentes dos socialistas. O socialismo da União Soviética foi essencialmente o socialismo de 1902 do revolucionário Karl Kautsky[17,10]. Todos os elementos chave estavam nesse trabalho de Kautsky. A pretensão de que uma economia monetária socialista era a mesma coisa de que uma economia comunista não monetária era uma exposição falsa.

Porque a URSS não alcançou o comunismo?

As bases materiais e técnicas do comunismo serão construídas até o final da segunda década (1971-80), garantindo uma abundância de valores materiais e culturais para toda a população; A sociedade soviética irá se aproximar de um estágio onde introduzira o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, e irá transacionar gradualmente para uma forma de propriedade-publica. Assim, uma sociedade comunista irá, em seu principal, ser construída na URSS. A construção da sociedade comunista será totalmente concluída no período subsequente
(Programa CPSU 1960)

A URSS em 1960 era ainda muito ambiciosa. Eles tinham um cronograma muito otimista para ultrapassar os EUA e em muitas indústrias-chave esse objetivo foi de fato alcançado.  A transição para o comunismo era vista somente em termos de quantidade de produção, não em termos de mudança das relações sociais. A eletrificação era ainda vista como um desenvolvimento técnico chave:  A eletrificação, que é o pivô da construção econômica da sociedade comunista, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de todos os ramos econômicos e na efetivação de todo o progresso tecnológico moderno. Portanto, é importante assegurar o desenvolvimento prioritário da produção de energia elétrica. É notável que nenhuma atenção foi dada a tecnologia da informação como uma tecnologia que possibilitaria o comunismo.

Quão bem eles realmente se saíram? A tabela 1 mostra que em seu objetivo principal de produção elétrica a URSS já em 1990 estava se saindo melhor do que os melhores países capitalistas europeus alcançaram um quarto de século depois.
Tabela 1: Comparação do energia disponível para diferentes economias convertido em equivalentes de esforço de trabalho humano per capta. A suposição é que um trabalhador manual poderia fazer 216 KWh por ano de trabalho.

Ano Gwh Trabalho humano
equiv per capta
China 2014 5665000 19.2
EUA 2014 4331000 63.1
EU 2014 3166000 19.7
URSS 1990 1728000 27.3
URSS 1940 48000 1.2
URSS 1931 8800 0.3
Russia 1913 1300 0.0
GB 2014 338000 24.8
GB 1907 61320 7.3

Isso era energia suficiente para o comunismo?

E quanto a produção de comida?
Quão bem se saiu a URSS em alcançar seus objetivos aqui?
Muito bem de acordo com a tabela 2

Tabela 2: Comparação da produção de alimentos fonte de proteína na União Soviética com o Reino Unido, Brasil e EUA. Note que para todas as categorias a URSS possuía números

Ano Carne Leite Ovos
Kg Kg Unidades
URSS 1988 69 375 299
Brasil 1988 49 96 163
RU 1988 55 265 201
EUA 1988 58
EUA 1990 236
EUA 1995 259

melhores. Fonte, base de dados[14] FAOSTAT e USDA.
Era comida suficiente para o comunismo?

Mas o crescimento soviético diminuiu seu ritmo. A era Kureschev havia assumido que o país continuaria com crescimento exponencial e definiu o comunismo em termos de se alcançar crescimento exponencial. O pressuposto de crescimento exponencial era irrealista. O crescimento real não pode ser exponencial por muito tempo, é inevitável que comece a desacelerar. Crescimento real tende a seguir uma curva logística como essa:
curva-logistica

O comunismo de Kruschev minimizou a mudança social

Em uma sociedade comunista não haverá classes, e as distinções socioeconômicas, culturais e nas condições de vida, entre cidade e campo irão desaparecer; o campo irá se elevar ao nível da cidade em desenvolvimento das forças produtivas e da natureza do trabalho, nas formas das relações de produção, nas condições de vida e no bem-estar da população.

(Programa CPSU 1960)
Mas o programa concreto não deu nenhuma medida para abolir as classes ou abolir dinheiro e mercadoria. Quando a impossibilidade de manter o crescimento de 10% se fez sentir, isso foi visto como uma falha do comunismo, uma vez que a mudança social não estava em seu núcleo. Se a sociedade não estava progredindo, ele falhou em inspirar as pessoas e no final da década de 80, comunistas não podiam mais resistir às pressões da ideologia capitalista

Os teóricos burgueses disseram que o comunismo era impossível

Von Mises

Somente dinheiro proveem uma base racional de comparação de custos. Calculo em termos de tempo de trabalho é impraticável por causa dos milhões de equações que necessitariam ser resolvidas

Hayek

O mercado é como um sistema de telefonia trocando informações para manter a economia funcionando. Somente o mercado pode resolver problema de informação dispersa.

Existe uma verdade limitada nisso. O Comunismo de Marx não era ainda possível em 1960 devido a limitações no processamento de informação. O primeiro estágio do comunismo de Marx presumia:

  • Nenhum dinheiro
  • Calculo em termos de tempo de trabalho e valor de uso
  • Pagamento em créditos de trabalho

Mas, para calcular o conteúdo de trabalho de todo bem, era necessária a solução de milhões de equações. Os computadores de 1960 não eram poderosos o suficiente. Isso teve efeito nas limitações do socialismo soviético.

Dinheiro era ainda necessário para o cálculo econômico mesmo no setor planificado. Havia um problema de agregação no planejamento que exigia a definição de objetivos monetários. Havia uma incapacidade de lidar com planos desagregados em todos os níveis da União. Dinheiro era ainda necessário para o pagamento de salários. Mas dinheiro levou ao mercado negro, corrupção e pressão para restaurar as relações capitalistas.

Desenvolvimentos chave nas forças produtivas desde 1960
Mas desde 1960 houve uma série de avanços técnicos que permitem a nós remover essas antigas objeções a economia comunista

Internet

Permite planejamento cibernético em tempo real e pode resolver o problema da dispersão de conhecimento – Objeção principal de Hayek

Big-Data

Permite a concentração da informação necessária para o planejamento.

Super-computadores

Podem resolver milhões de equações em segundos – objeção principal de von Mises

Cartões de credito

Permitem a substituição do dinheiro por créditos de trabalho não transferíveis.

Complexidade computacional

Quão fácil é resolver milhões de equações? Existem problemas que são computacionalmente intratáveis até mesmo para os maiores computadores. O planejamento econômico ou o uso do contábil do trabalho são dessa natureza? Não, não são. Em uma série de artigos [2,6,5,4,9,8], Allin Cotrell,  Greg Michaelson e eu mostramos que a complexidade computacional de calcular o valores de trabalho para uma economia inteira com N produtos distintos cresce em Nlog(N). Isso significa que é altamente tratável e facilmente resolvido por computadores modernos.

Democracia Direta

Também é possível a utilização de votos por redes de computadores e celulares para permitir controle democrático direto da população sobre a economia. Isso permitir que decisões estratégicas majoritárias sejam tomadas democraticamente, questões como: Quanto trabalho dedicar a educação? Quanto para saúde e pensões? Quanto para a proteção ambiental? Quanto para a segurança nacional? Quanto para novos investimentos?
Tudo isso pode ser feito por votação direta utilizando computadores e celulares durante o ano todo. Nós ja protótipamos software para agregar os desejos públicos dessa maneira [7,15,16,3]

Equivalencia

O princípio de Marx era que os bens não públicos deveriam ser distribuídos sobre o princípio da equivalência – você tem de volta em bens a mesma quantidade de trabalho – fora impostos – que você produziu. Dessa forma os bens são cotados em horas de trabalho. O feedback cibernético das vendas para o plano ajusta a produção às necessidades do consumidor, conforme mostrado na figura 1:

planprocess
Figura 1: Planejamento cibernético

Marx argumentou que o cálculo em termos de tempo de trabalho iria levar a grande eficiência. O sistema de salários desvaloriza o custo social real do trabalho e desencoraja o uso das maquinas mais modernas. Transição para o cálculo comunista irá levar ao uso racional do tempo de trabalho e ao crescimento mais rápido da produtividade do trabalho:

crescimento-produtividade-trabalho
Figura 2: O crescimento da produtividade do trabalho tem encolhido na última metade de século no Reino Unido. Taxas de crescimento calculadas como média móvel nos últimos 5 anos a partir dos dados do ONS para a produção por trabalhador para toda a economia.

crescimento-produtividade-internacional
Figura 3: O declínio no crescimento da produtividade é um fenômeno internacional. Dados obtidos das Extended Penn World Tables. Note que esses dados somente vão até o início da crise de 2008.

Em todo o mundo capitalista, esta lei está em vigor, retardando o crescimento da produtividade do trabalho. A classe capitalista procura trabalho barato, o que sistematicamente detém o progresso técnico. Eles demonstram uma falta de vontade crônica em investir. Economistas ortodoxos chamam isso de estagnação secular. Você pode ver o efeito deste declínio claramente na melhoria da produtividade de trabalho mostrado nas figuras 2 e 3.

Passos de transição para o primeiro estágio do comunismo.

“O proletariado usará a sua dominação política para arrancar a pouco e pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção na mão do Estado, i. é, do proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção.

Naturalmente isto só pode primeiro acontecer por meio de intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, através de medidas, portanto, que economicamente parecem insuficientes e insustentáveis mas que no decurso do movimento levam para além de si mesmas e são inevitáveis como meios de revolucionamento de todo o modo de produção.

Estas medidas (11*) serão naturalmente diversas consoante os diversos países. ”[13]

Apesar disso, na maioria dos países socialistas, as seguintes medidas comunistas são geralmente aplicáveis:

Medidas imediatas:

  • Unidade monetária convertida para a hora de trabalho definida pelo valor médio criado por hora.
  • Mudar o financiamento estatal de lucros de empresas estatais para o estado financiado pelo imposto de renda progressivo.
  • Legislação para garantir aos empregados o valor total nas “empresas”, após impostos.
  • Conversão das firmas privadas remanescentes em cooperativas
  • Desenvolver sistema centralizado de internet para rastrear todas as compras e vendas
  • Remover todo o dinheiro em papel e moeda, substituir por cartões de crédito eletrônicos.

Durante a preparação, a troca de mercadorias entre empresas ainda existe e as transações monetárias ainda são possíveis, mas a exploração é eliminada. Nos próximos estágios, as seguintes medidas podem ser apropriadas:

  • Eliminação da circulação privada de dinheiro, e dinheiro sendo usado somente para consumidores comprarem produtos de lojas publicas.
  • Troca de mercadoria entre empresas substituída por planejamento diretivo computadorizado.
  • Equalização das taxas salariais entre homens e mulheres e entre diferentes profissões e ofícios

O avanço técnico, em escala mundial, está sendo detido pelo sistema de salários. Há uma crescente contradição entre as relações sociais do capitalismo e o potencial das novas forças produtivas. A nova tecnologia da informação permite uma transição direta para o modo de cálculo comunista. As novas relações de produção comunistas abolirão as diferenças de classe e permitirão retomar o progresso técnico e humanitário.

Referencias:

[1] Nikola Bukharin. ABC of Communism.
[2] Paul Cockshott and Allin Cottrell. Labour value and socialist economic calculation. Economy and Society, 18(1):71-99, 1989.

[3] Paul Cockshott and Karen Renaud. Extending handivote to handle digital economic decisions. In Proceedings of the 2010 ACM-BCS Visions of Computer Science Conference, page 5. British Computer Society, 2010.

[4] W Paul Cockshott and Allin Cottrell. Economic planning, computers and labor values. conference Karl Marx and the Challenges of the 21st Century, Havana, Cuba, May, pages 5-8, 1999.

[5] W Paul Cockshott and Allin F Cottrell. Information and economics: a critique of Hayek. Research in Political Economy, 16:177-202, 1997.

[6] W Paul Cockshott and Allin F Cottrell. Value, markets and socialism. Science & Society, pages 330-357, 1997.

[7] WP Cockshott and K. Renaud. HandiVote: simple, anonymous, and auditable electronic voting. Journal of information Technology and Politics, 6(1):60-80, 2009.

[8] Allin Cottrell, Paul Cockshott, and Greg Michaelson. Is economic planning hypercomputational? The argument from Cantor diagonalisation. School of Mathematical and Computer Sciences (MACS), Heriot-Watt University Edinburgh, available at: www. macs. hw. ac. uk/ greg/publications/ccm. IJUC07. pdf (accessed December 10, 2008), 2007.

[9] Allin Cottrell, WP Cockshott, and Greg Michaelson. Cantor diagononlalisation and planning. Journal of Unconventional Computing, 5(3-4):223-236, 2009.

[10] Karl Kautsky. The social revolution. CH Kerr, 1902.

[11]Marx, K. (1847). Miséria da Filosofia . Fonte: Marxists.org: https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm

[12]Marx, K. (Janeiro de 1859). Para a Crítica da Economia Política. Fonte: Marxists.org: https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm

[13] Karl Marx e Friederick Engels. Manifesto do partido comunista, https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm.

[14] Bertram Patrick Pockney. Soviet statistics since 1950. Aldershot (UK) Dartmouth, 1991.

[15] Karen Renaud and WP Cockshott. Electronic plebiscites. 2007.

[16] KV Renaud and WP Cockshott. Handivote: Checks, balances and threat analysis. Submitted for Review, 2009.

[17] M. Salvadori. Karl Kautsky and the socialist revolution, 1880-1938. Verso Books, 1990.

[18] Joseph Stalin. Economic Problems of Socialism in the USSR. Moscow, 1952.

[19]Stálin, J. V. (Setembro de 1945). Sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico. Fonte: Marxists.org: https://www.marxists.org/portugues/stalin/1938/09/mat-dia-hist.htm